Literatura na sala de aula: entre Machado de Assis e Felipe Neto
No final de semana passado, circulou um meme com uma senhora segurando uma placa e os dizeres: "Crie uma treta literária e saia". Felipe Neto protagonizou a maior delas, ao dizer que “forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura”. Será? Machado de Assis é, inegavelmente, um dos maiores escritores brasileiros. Contudo, devemos lembrar que ele era um escritor difícil até para seus contemporâneos.
A literatura na sala de aula deveria ser um exercício de liberdade. Quando uma poesia, uma frase dessas que a gente posta nas redes sociais nos toca, ela nos toca porque brilha para nós como uma verdade luminosa. É a verdade o mais alto estágio da beleza. A literatura na sala de aula deveria inspirar, celebrar a beleza de estar vivo. “Às vezes paro para ouvir passar o vento. E só por poder parar para ouvir passar o vento, sinto que vale a pena ter nascido” é um verso de Fernando Pessoa. E é sobre isso. A literatura na sala de aula deveria ser para fazer querer viver.
A questão é: qual literatura?
Machado de Assis é, inegavelmente, um dos maiores escritores da literatura brasileira. Já é lugar comum dizer da ironia fina de seus textos. É inegável a engenhosidade do jogo narrativo e mental – quase psicanalítico – da relação entre Bentinho e Capitu. É impossível não reconhecer o valor do mergulho profundo na alma humana de um conto como “O espelho”, ou a análise refinada da estrutura social de um “Pai contra a mãe”, essa espécie de Os miseráveis dos trópicos; afora a questão étnica e o apagamento sistemático da sua mulatinidade, tão sintomático de nossa sociedade. Mas é preciso ter em mente que o fundador da Academia Brasileira de Letras não era uma leitura fácil nem para os de sua época.
Sua grande obra-prima, Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi publicada em 1881. O primeiro censo do IBGE é de 1872. A taxa de analfabetismo na época era superior a 82%. Oitenta e dois por cento. Isso significa que, na época áurea de nossa literatura, em que escreviam José de Alencar, Cruz e Sousa, Luís da Gama, Castro Alves, Olavo Bilac, Rodolfo Teófilo, José Albano, Francisca Júlia, Raul Pompeia, Duarte Badaró, Machado de Assis, menos de 18% da população brasileira, estimada em 10 milhões, sabia ler e escrever.
Isso significa que adolescentes de hoje não devam ter acesso a ele? O contrário. A questão é: o que estamos fazendo? Nas escolas, a literatura perdeu quase todo o seu brilho; não fossem os esforços pontuais de alguns professores. Deixou de ser arte, virou disciplina. E tudo começa com as aulas de língua portuguesa.
Celso Pedro Luft, num livro chamado Língua e Liberdade, diz que “não podemos persistir num ensino que gera, como produto final, afirmações tolas (que se ouvem até de pessoas cultas) como ‘português é a língua mais difícil do mundo’, ‘não sei português’ ou ‘neste país todo mundo fala errado’”. Eu seria menos eufemista: não podemos insistir num ensino que gera, como produto final, afirmações tolas como “eu odeio português” ou “português é a disciplina que menos entendo”. Como não entender sua própria língua? Como odiar sua própria língua? A questão é anterior − e paralela à questão de que estamos tratando: que língua ensinamos? Como poderia o estudante não gostar da língua em que ele pensa, com a qual se comunica, pela qual expressa o que sente e o que pensa? A língua que ensinamos é a língua que ele fala?
Não é óbvio. Ao afirmar tais coisas, o aluno não está se referindo à língua que ele, seus colegas ou nós falamos ou escrevemos. Basta dar uma pequena olhadela para os livros didáticos utilizados em salas de aula das escolas tanto públicas quanto particulares, em quaisquer que sejam os níveis; basta ler os manuais gramatiqueiros que os professores utilizam como recurso didático para ministrar suas aulas; basta observar uma aula sequer de português e logo perceberemos que essa revolta tem outro alvo: não é a língua. Mas esse ensino gramaticalista, tecnicista que quer empurrar goela abaixo do aluno nomenclaturas e definições que, para o ato da comunicação, para o desenvolvimento da potencialidade linguística, para a boa expressão e o bom domínio retórico do discurso, nada contribuem, sendo mais provável que atrapalhem.
Esse é um ensino totalmente desprovido de sentido. Um ensino em que a língua é tida como entidade exterior aos indivíduos e à qual ele deve uma reverência quase sagrada, onde o chamado “erro” é quase um oitavo pecado capital. Um ensino segundo o qual a fala do aluno deve estar subordinada às leis da língua, como se estas fossem mandamentos divinos e não características mutáveis e sociais, leis naturais de toda e qualquer língua, em toda e qualquer época; uma abstração fruto da alienação a que os estruturalistas relegaram a língua, como se a língua existisse sem indivíduos que a falassem, como se a língua não tivesse que se adaptar às circunstâncias históricas, sociais e até circunstanciais. Como se a língua não tivesse que se modificar para continuar cumprindo a sua função natural que é pôr em relação, comunicar, expressar pensamentos, sentimentos, desejos... ou quem sabe escondê-los. Um ensino que tende a impor estruturas sintáticas e leis ortográficas condizentes a uma só modalidade da língua (a dita “formal”), a uma única forma de falar, um só dialeto (que recebe até status de “língua”): o das classes dominantes, e que tende a coibir, inibir e silenciar o indivíduo no que ele tem de mais genuíno: a expressão espontânea e livre de seu espírito, o dizer alegre e vivo de sua alma, a força do desejo que sente, o poder do medo que guarda, o pensamento vibrante de si, que quer, deseja, anseia e sonha.
Estudar a nomenclatura gramatical ou a classificação das funções das palavras na frase não é, nunca foi e nunca será estudar língua. Não se aprende a dirigir um carro apenas decorando o nome de suas peças. Da mesma forma, estudar as escolas literárias não é, nunca foi e nunca será estudar literatura, mas história da literatura. E só. Sim, há livros e professores que tentam minimamente redimir esse tipo de estudo com certas migalhas literárias, trechos ou resumos de obras, tais escolas, com tais importantes obras para tais autores, cada um com sua obra-prima particular. E a literatura de verdade? E o frisson de escrever? E o prazer de ler? E a reflexão sobre o homem, sobre o mundo, sobre a grande História, ou mesmo sobre as micro-histórias? Sobre as guerras e a fome e a morte? Sobre a sociedade e as relações de poder escondidas debaixo dos pequenos gestos humanos dos quais os personagens e as personas poéticas são símbolos maiores? E o estudo e a análise da alma e do pensamento humano através da literatura? E a tentativa de compreensão do que somos cada um de nós, do que nos falta, do que fazemos aqui, de pra onde ir? Tudo isso se perde com esse ensino historicista e estruturalista que quer ver tudo an passant, e, na ânsia de ver tudo, acaba por ver nada e, mais ainda, a gerar o pior trauma de que um estudante pode ser vítima: o trauma da leitura. A pior das cegueiras, a de não querer ler. O pior dos analfabetismos: o analfabetismo de quem sabe ler mas não quer ler, não faz questão. Ora, todos assistimos estarrecidos, nos dias atuais, as consequências nefastas desse trauma, o de não querer ler. “Não querer ler”, já dizia Mafalda, a do Quino, “te obriga a acreditar no que te dizem”.
Onde aquela vontade inicial de quando aprendemos a decifrar as primeiras letras? Onde aquele amor que sentimos quando conseguimos, por fim, entender sozinhos, sem ajuda de ninguém, a primeira história? Onde se escondeu a paixão de imaginar, de enxergar a imagem por trás da palavra e enxergar as palavras dentro de tudo? Onde?
Que outro sentimento poderia ter o aluno obrigado a fazer a cópia do texto até a mão doer? Que outro sentimento pode ter o aluno enviado para a biblioteca como castigo? Que outro sentimento poderia ter o estudante que ouve o tempo todo de seu professor que ele não sabe falar, que ele fala errado, e que ele, por consequência, é burro, que a língua em que ele e sua comunidade se comunicam é uma corruptela da dita norma dita culta? Que outro sentimento poderia ter o aluno que é obrigado a decorar listas e mais listas de como começar, continuar ou terminar um texto, como se houvesse expressões certas para isso? Como se isso não matasse o que a alma humana tem de mais humano: o poder de criar tudo, a criatividade de trazer à vida e à realidade os objetos do sonho, da imaginação e da vontade de fazer existir o que ainda não existe.
Ao invés de trabalhar com a língua viva, em funcionamento; com a leitura prazerosa e proveitosa; com textos que possam tornar o indivíduo crítico em relação à sociedade em que vive, crítico em relação a si mesmo e também aberto à compreensão das limitações do outro; com textos que possam ensinar a ele sobre estilo e poética. Ao invés disso, preferem tentar fazer com que ele decore fórmulas e regras ortográficas, gentílicos, coletivos, vozes de animais, pontos de articulação (bilabial, línguo-dental, alveolar etc.); o máximo que conseguiremos é o que estamos conseguindo.
Roland Barthes nos diz que, se, por um excesso qualquer de barbárie, o homem extinguisse da terra as ciências todas e só restasse a literatura, ela supriria todas as outras. Num romance como Robinson Crusoé, afirma ele em Aula, “há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico”. Ora, não o há também em Iracema? Em Seara Vermelha? Em Caetés? Em O Cortiço? Na literatura, o saber faz festa.
O que não é a literatura senão a própria vida transmutada em palavra? A literatura é um processo alquímico. Ah! Quanto aprendizado se estudássemos na escola todas as disciplinas através da literatura! O homem que calculava, para ensinar matemática. Admirável Mundo Novo, para ensinar biologia. Cinco semanas num balão, para ensinar geografia. E para ensinar a história do Brasil, todas as obras possíveis: Agosto, de Rubem Fonseca. Em liberdade, de Silviano Santiago. Dois irmãos, para falar de Manaus. Seara Vermelha, para falar do Nordeste. Ninguém é inocente em São Paulo, para analisar as cidades e compará-las ao campo. Patativa do Assaré. Miró. Mário Gomes. Cego Oliveira. Zé Limeira. Walter di Lascio. Quanta riqueza de conhecimento se tivéssemos como professores os escritores!
À guiza de conclusão, é preciso dizer que a literatura não é uma disciplina, é uma arte. Quando lemos, nos comunicamos em silêncio. Ler é ser guiado pelos livros. Livros não são páginas rabiscadas com palavras, apenas. Livros são pessoas falando, conversando, debatendo, pensando sobre tudo, sobre o mundo, sobre as coisas que se compõem e se decompõem, sobre aquilo que edifica e destrói, sobre as pessoas e suas feridas. Sobre a alma e sobre a morte. A história e a política. A ciência, a vida. Ouvir os livros é dialogar com eles. Essa é a chave. Livros são guias. Por isso, ler é tão perigoso. Que pode um poeta querer senão fazer justiça com as próprias mãos?
Estudar literatura tendo como foco, de fato, a literatura e não a história da literatura ou a análise estrutural dos contos, dos romances... o “ópio dos literatos”, como disse Otto Maria Carpeaux; estudar literatura, quando o foco é a própria literatura e não a história da literatura, com suas escolas literárias definidas pelo cânone (e, portanto, pelo filtro de um poder vigente); estudar literatura quando o foco é a própria literatura é procurar entender como vivemos e por que vivemos assim, é procurar ver e viver o mundo de infinitas possibilidades, nas personas poéticas ou nas personagens, aprendendo com eles a encantar passarinhos.
“Os poetas sabiam intuitivamente muitas coisas que eu bem penara para aprender” confessou Freud, sábia e sabidamente. Devíamos, portanto, todos seguir os ensinamentos de Bachelard, para quem “os poetas são [ou deveriam ser] o verdadeiro estudo daquele que deseja conhecer o mundo”. Se é através do sonho que o futuro se comunica e o poeta, a poetisa, aquele ou aquela dado ou dada ao sonho; se é o poeta o que trata do que poderia ser, como diz Aristóteles; se o poeta é aquele que pré-vê o que vem; a poesia é uma profecia. Jorge de Lima estava certo. Ora, não é o poeta aquele encarregado de colher as palavras de cima das águas para oferecê-las de novo aos homens do continente? Léo Mackellene é escritor. Mestre em “Literatura e Práticas sociais” pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Argumentação jurídica no curso de Direito e Editor-chefe de Publicações da Faculdade Luciano Feijão (FLF), em Sobral-CE. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste (ALANE). Redator do Guia Dragão. E-mail: leomackellene@gmail.com
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