COMO DESCEMOS TÃO FUNDO? Epistemologia do Brasil Contemporâneo
Um fantasma ronda o Brasil: o fantasma do comunismo. A pergunta que paira no ar, no entanto, é: por que, quando em todo o mundo esse fantasma já faz parte de um imaginário anacrônico, de uma realidade que já não existe mais, instada num passado já distante, nós, aqui no Brasil, ainda estamos nessa?
Estamos em Guerra Fria
A Guerra Fria se deu num período histórico cuja datação exata, nos círculos acadêmicos, ainda é controversa. Sem querer entrar nos pormenores, mas a fim de nos situarmos na linha do tempo, é o período que compreende o conflito ideológico (qual não é?) entre a União Soviética e os Estados Unidos; o primeiro representando o “comunismo”, modelo de organização social em que o Estado exerceria maior controle sobre a economia – pra resumir −, e o segundo, representando o “capitalismo”, modelo dito mais “liberal”, que defende coisas como estado mínimo, abertura dos mercados internos e por aí vai – também pra resumir. Pode-se considerar que esse período vai de depois das bombas atômicas no Japão (agosto de 1945) ao esfacelamento da União Soviética (que começa com a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989).
A principal característica da Guerra Fria, no entanto, é que ela é um conflito de narrativas. Caberiam muitas páginas pra desenvolver este aspecto, mas, para ficarmos nos limites de um ensaio como esse, basta dizer que, nesse tipo de conflito de narrativas, há uma série de provocações feitas a partir de sugestões de invasão de território, de espaço aéreo, anúncio de embargos econômicos ou ameaças de sanções bélicas, uma espécie de “arenga” que, muitas vezes, pode beirar o terrorismo psicológico. Além destas "soluções", digamos, mais pragmáticas da Guerra Fria, há que se considerar um dos seus mais eficientes campos de atuação: o de construir no imaginário do maior número de pessoas certo ideário sobre o outro que provoque aversão ou empatia; no auge, medo ou paixão. O mundo viveu isso de maneira intensa a partir da segunda metade do século XX. O imaginário de ambos os lados foi bombardeado por figuras como Hitler, Stalin, Mussolini etc. Hoje, no entanto, já beirando o primeiro quarto do século seguinte, o conflito “comunismo” vs. “capitalismo” no mundo europeu, antes seu epicentro, já se arrefeceu. A maior parte dos países conseguiu adotar uma forma de organização social conhecida como social-democracia, onde há certo equilíbrio entre as liberdades econômicas e individuais e a proteção estatal em áreas essenciais como saúde, educação, segurança e energia.
O Brasil chegou a viver o peso do conflito “comunismo” vs. “capitalismo”, ainda no século XX, a partir de feições mais locais como os chamados “golas-vermelhas”, a Coluna Prestes, e o banditismo dos grupos de cangaceiros que caminhavam à espreita pelo Sertão Brasileiro invadindo fazendas, rendendo pequenas cidades e espalhando o pânico entre a população; o bando de Lampião foi o mais famoso deles. Outros imaginários se espalharam como força de folclore pela população pouco informada. Importante lembrar que, em 1940, no Brasil, a taxa de analfabetismo era superior a 56% e que, depois de vinte e um anos de Ditadura Militar, em 1985, essa taxa ainda era superior a 30%(1). Esse imaginário folclórico era constituído por ideias como as de que os comunistas comiam criancinhas (no sentido canibalesco mesmo), de que, uma vez no poder, fechariam igrejas ou substituiriam a bandeira do Brasil por uma bandeira vermelha e coisas do tipo. Essa memoriabília veio à tona em 1964, com movimentos de Direita como a “Marcha da Família com Deus”, que culminaram na deposição do presidente João Goulart (do Partido Trabalhista Brasileiro, à época associado à esquerda) e a Ditadura; circulou ainda em 1989, para impedir a eleição de Lula, à época, e facilitar a eleição de Fernando Collor de Melo, que acabou sendo impeachado em 1992, e reapareceu, recentemente, associado a um pretenso pensamento (dito) “conservador”, enquanto o imaginário sobre os (ditos) “comunistas” associavam-lhes a uma imagem bastante pejorativa do chamado pensamento “progressista”, que parecia, para esse primeiro grupo, não só diferente, mas ameaçador. A exemplo das estratégias do contexto da Guerra Fria, o imaginário dos brasileiros foi bombardeado por figuras como Hugo Chavez, Che Cuevara, Fidel Castro, Cel. Carlos Brilhante Ustra, Pinochet etc. Foi justamente este imaginário responsável pela eleição de Jair Messias Bolsonaro.
A pergunta que paira no ar, no entanto, é: por que, quando em todo o mundo o conflito “comunismo” x “capitalismo” já soa anacrônico, já faz parte de uma realidade distante, instada no passado, nós, aqui no Brasil, ainda estamos nessa?
Modernidade sem modernização
Esta é uma síntese grosseira. Para desenvolvê-la em todos os seus meandros, seriam necessárias algumas dezenas de páginas. A despeito disto, dentro deste breve ensaio político, tentarei não fugir da essência de cada conceito e categoria epistemológica a que me referir até o final do texto, correndo o risco de ser impreciso em alguma ou mais colocações, mas procurarei desenhar um quadro através do qual consigamos enxergar por que somos quem somos e por que estamos como estamos no Brasil.
Vivemos hoje, no Brasil, bem como em boa parte da América Latina, o que o antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini chamou, em seu Culturas Híbridas, de “modernidade sem modernização”, uma condição sociológica que bem pode ser caracterizada como “modernização tardia”. O crescimento populacional das grandes cidades, bem como a modernização das cidades do interior são um fenômeno relativamente recente, do início dos anos 2000. Em 1960, apenas 45% da população brasileira vivia em áreas urbanas, enquanto em países como os EUA, Alemanha ou Inglaterra beiravam já os 80%(2). Em 2003, quarenta anos depois, a população urbana do Nordeste brasileiro ainda estava abaixo da marca de 70%(3).
Este contorno e caracterização dessa modernização tardia na sociedade brasileira, associada ao alto índice de analfabetismo, possibilitou a co-existência de muitas formas de pensamento e de comportamento; formas não só diferentes, mas antagônicas, pautadas, algumas delas, em modelos conservadores; outros, em modelos mais progressistas.
A resposta, portanto, para a pergunta que motiva este ensaio passa pelo estudo dos processos de modernização não dos espaços urbanos do Brasil, mas da mentalidade do brasileiro.
Formação da mentalidade brasileira
Primeiro, como se forma um pensamento? O pensamento recebe influxos de muitos lados, desde o gênero do indivíduo até sua etnia, a cultura dentro da qual está inserido ou pela qual se formou como sujeito, aspectos religiosos, educação familiar, mas também o grau de instrução e letramento, os tipos de livros que leu ou das ideias com as quais entrou em contato, filmes, canções, relações interpessoais, relações afetivas, a empatia ou aversão que teve a cada uma das ideias com as quais pôde entrar em contato, o que está diretamente associado aos contextos afetivos pelos quais entrou em contato com essas ideias, enfim. Não obstante todos esses elementos responsáveis pela sua formação, um elemento se apresenta como chave: a escola. É no processo educacional que se forma (ou não) o cidadão capaz (ou não) de refletir sobre sua condição no mundo e sobre sua condição de sujeito histórico, por exemplo, o que acaba por orientar a forma como ele vai intervir (ou deixar de intervir) no mundo. Por isso, quando temos uma mudança de governo, a educação é uma das primeiras áreas a sofrerem intervenções profundas, na própria base, nos próprios parâmetros curriculares. As disciplinas escolares, portanto, influenciam enormemente a mentalidade desse indivíduo que frequenta todos os dias a escola e passa lá pelo menos um quarto do seu tempo recebendo um tipo de formação, orientando sua forma de ver o mundo, de julgá-lo, e construindo, também, seus modelos de intervenção sobre o mundo e sobre o outro.
A questão é que todas as disciplinas escolares, no atual modelo de ensino, foram constituídas por uma corrente da ciência chamada de “estruturalismo”. Se tomarmos o ensino de língua como exemplo – um caro exemplo, posto que é a partir da língua que todo o conhecimento se constitui −, perceberemos que o atual modelo pedagógico trata a língua como uma entidade exterior ao indivíduo que fala, à qual ele deve total respeito, porque, segundo este ensino, deve-se subordinar às “regras” da língua, como se elas fossem “leis de trânsito” e não características, leis naturais da língua, como as leis da física (a lei da gravidade, por exemplo). Essa forma de entender a língua advém do estruturalismo, corrente da ciência que se atém à análise e classificação das “formas”, das “estruturas” da realidade, do pensamento, da sociedade, da linguagem etc. Não cabe aqui fazer a crítica a este modelo de ensino. Tenho feito em outros textos, me atendo a detalhes mais específicos do funcionamento, da formação e do ensino da língua. Limito-me aqui a dizer apenas que esse ensino tende a privilegiar não o desenvolvimento das habilidades linguísticas do indivíduo, mas apenas sua capacidade de memorizar conceitos, classes gramaticais, de classificar as estruturas sintáticas, de memorizar as formas ortográficas condizentes a uma só modalidade da língua, geralmente a das classes mais letradas, e que tende a inibir o indivíduo no que ele tem de mais genuíno: a expressão espontânea e livre de si mesmo, de seu espírito, o dizer de sua alma e do que ele sente, quer, pensa e deseja.
A crítica a esse modelo de ensino, desde a ascensão ao poder executivo do país de um governo progressista, tem sido feita com certa sistemática. Em 2011, o MEC distribuiu um livro didático de língua portuguesa intitulado Por uma vida melhor, que trazia essas e outras questões relativas às línguas faladas no Brasil no mesmo idioma (a língua portuguesa) e mais as tantas outras línguas faladas no país (o yorubá africano, o árabe, as mais de 200 línguas indígenas, além do japonês, que é a segunda língua mais falada no Brasil, do alemão e do italiano, além de outras línguas minoritárias). À época que o livro Por uma vida melhor foi lançado, setores conservadores da sociedade reagiram. A revista ISTOÉ, por exemplo, chegou a publicar uma matéria intitulada “O assassinato da língua portuguesa”(4). O antigo porta-voz da ditadura militar Alexandre Garcia teceu severas críticas ao livro em editorial do jornal televisivo Bom dia, Brasil, da Rede Globo, em 17 de maio de 2011 (5). Dada toda repercussão negativa, o MEC não teve outra escolha senão recolher o livro. Essa reação, digamos, conservadora se deu em muitos âmbitos, também no acadêmico. Um dos principais expoentes da abordagem progressista dos estudos da língua foi o linguista mineiro Marcos Bagno, que, em 1999, publicou um livro que popularizou nos meios acadêmicos a abordagem sociolinguística, o livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz, que em 2015 encontrava-se em sua 56ª edição. O livro Por uma vida melhor é resultante das reflexões que o livro de Marcos Bagno traz. No âmbito acadêmico, os sociolinguistas foram taxados de "linguistas que leram Marx".
O fato é que tanto um livro quanto outro eram parte de um movimento de transformação da mentalidade brasileira. Estávamos, ali, saindo de uma época estruturalista para uma pós-estruturalista. E isso tem implicações importantes no nosso comportamento enquanto sociedade.
Estruturalismo e forma social
O estruturalismo, antes de ser uma corrente da ciência, é um modo de observar a realidade que mais se interessa, como o próprio nome diz, pela “estrutura” das coisas que pelos contextos em que elas se inserem ou pelas funções que exercem. O estruturalismo, embora inaugurado somente em 1916, com a publicação do Curso de Linguística Geral, baseado nos estudos sobre a linguagem do linguista suíço Ferdinand de Saussure, é herdeiro do positivismo francês que tinha, na análise experimental das estruturas da realidade, os princípios e fundamentos de seus métodos de pesquisa, estudo e compreensão do mundo. Essa preocupação exacerbada com as estruturas da realidade foi exaltada pelo parnasianismo; entendido aqui não apenas como uma escola literária, mas como a mais alta manifestação do espírito de uma época.
A poesia e a arte de maneira geral são sempre a mais alta expressão dos valores de uma época. O que uma sociedade valoriza em determinado período histórico, seus modelos de pensamento, de comportamento, de organização social etc., acaba constituindo o cânone de uma época, dando destaque a certos artistas e certas obras. Por isso, acabam constituindo-se como formas de “propaganda” de certos valores, de certos modelos de comportamento e de certas formas de ver o mundo. São as tais narrativas de que falávamos no começo do texto e se propagam através de músicas, filmes, poemas, livros, quadros etc.
No Brasil, por influência da então capital do mundo civilizado, a França, foi esse culto da forma – o parnasianismo − o responsável pela construção dos símbolos republicanos nacionais tais como o Hino Nacional, composto pelo poeta Joaquim Osório Duque-Estrada, e o Hino da Bandeira, composto por Olavo Bilac; ambos poetas parnasianos, sendo, este último, o maior representante desta escola literária entre nós. Além do parnasianismo, o positivismo também foi responsável pela construção de nosso ideário de nação, ostentado desde a bandeira do Brasil, onde se podem ler justamente os princípios positivistas: Ordem e Progresso. O culto à forma, no Brasil, se confunde com o culto a certos modelos culturais tradicionais conservadores que vêm resistindo aos influxos progressistas republicanos que se intentam imprimir ao sermo brasileiro certos ares mais contemporâneos. O apego a tais modelos conservadores, que, em certa memória se confunde com alguma pretensa "Ordem" − associada ao "bem" e ao "bom" − é que tem sido, paradoxalmente, uma das principais causas de nosso não-progresso no campo das ideias.
A época estruturalista figurou sobre o pensamento humano do século XX e construiu todo um arcabouço teórico que alcançou as mais diversas abordagens da reflexão sobre o mundo e sobre o homem, da antropologia à psicologia, das ciências exatas às ciências naturais e médicas, passando pela linguística e também pela física, quando, então, aprendendo sobre a constituição das forças da natureza e do homem, bem como pela percepção de como funcionam (o funcionalismo científico é corrente que sucede ao estruturalismo), pôde o homem, então, construir a recente onda da “modernidade”, através de máquinas que serviam para exponencializar sua ação sobre o mundo e sobre ele mesmo: carros para se locomover mais rapidamente, máquinas fotográficas para capturar o tempo, aviões para se locomover a longas distâncias, a indústria dos bens de consumo, rádios, telefones, televisores para se comunicar de longe e com maior simultaneidade etc. No início do século XX, o homem viveu o ápice do estruturalismo. Até que, em 1938, foi descoberta a fissão nuclear dos átomos, primeiro passo para alcançar o pico da chamada “modernidade pesada”: a bomba atômica.
Pós-estrututalismo e guerra civil
As bombas atômicas explodiram sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki nos dias 06 e 09 de agosto de 1945. Aproximadamente 500 mil pessoas morreram, mas nasceu ali uma nova perspectiva para a humanidade: distopias pós-apocalípticas como Eu não tenho boca e preciso gritar, do escritor americano Harlan Ellison, publicada em 1967; o movimento hippie; a influência sobre o Ocidente de filosofias holísticas vindas da Índia ou da China; o uso popularizado de alucinógenos; a poesia concreta − que, apesar de lidar com a estrutura, lida com ela de maneira lúdica, quase uma brincadeira desconstrucionista da forma do texto, da forma das palavras; o existencialismo, que, embora remonte a filósofos do século XIX como Kierkegaard, Nietzsche e Heiddegger, só na segunda metade do século XX, com Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir, se popularizou, não apenas como corrente da filosofia, mas como reflexão sobre a existência, um profundo questionamento sobre a permanência e o sentido da vida do homem aqui na Terra. Nascia, portanto, com as bombas atômicas, o pós-estruturalismo.
Saímos de uma época em que estudávamos as estruturas não só para entendê-las, mas para nos apropriarmos delas, assimilá-las e, a partir daí, nos instrumentalizarmos para intervir no mundo, e entramos numa época em que passamos a questionar essas estruturas pré-existentes. Do questionamento dessas estruturas historicamente estabelecidas surge a necessidade do aprendizado de novas formas; daí o interesse não mais pelo produto (a estrutura pronta), mas pelo processo, pelo fazer (mais do que pelo “feito”). O pós-estruturalismo de Michel Foucault, Jacques Derrida, Deleuze e Guatarri, por exemplo, encaixa-se justamente nesse revisionismo epistemológico que nos trouxe, inevitavelmente, ao conflito não só de ideias, mas de modelos de comportamento, formas de ver o mundo e de lidar com ele e com os outros. Aqui, chamamos um modelo de "Direita conservadora" e "esquerda progressista".
O Brasil de hoje é o epicentro desse conflito que tem se extremado a cada dia e que pode nos levar a uma guerra civil sem precedentes. Ou seja, como sempre, não entendemos nada!Precisaremos de uma bomba?
(1) http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485745/Mapa+do+analfabetismo+no+Brasil/a53ac9ee-c0c0-4727-b216-035c65c45e1b?version=1.3
(2) http://educacao.globo.com/geografia/assunto/urbanizacao/urbanizacao-mundial.html
(3) https://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/urbanizacao-do-brasil-consequencias-e-caracteristicas-das-cidades.htm
(4) https://istoe.com.br/138200_O+ASSASSINATO+DA+LINGUA+PORTUGUESA/
(5) https://globoplay.globo.com/v/1511157/