Bolsonaro, amuleto de hipnose coletiva
Bolsonaro cresceu depois do vídeo? Essa não é a questão.
O vídeo da reunião ministerial, ainda que real, é uma peça de ficção. Está claro. São atores, personagens de uma trama macabra; desde o começo. Cada ministro ali é um personagem, um tipo psicológico e social. Cada um representa um arquétipo, um estereótipo. Quantas Damares não existem por aí? (Aposto que cada um de nós tem uma tia meio Damares, mesmo que distante). Quantos Weintraubs nós não temos na família? Quantos Onyx Lorenzonis? Até o Moro faz parte do jogo. Vocês já esqueceram? "Com o supremo, com tudo".
A política é a arte do discurso. Quem controla a narrativa controla tudo. O livro de cabeceira da política contemporânea é "O príncipe", de Niccolo Machiavelli. E ainda que nunca o tenham lido, o livro já se traduziu nas práticas cotidianas da política (nacional e internacional).
Bolsonaro cresceu depois do vídeos? Em termos de número, há controversas. A Fundação Getúlio Vargas identificou 5 milhões de tuítes pautando o debate político depois da exibição do vídeo. 58,4% deles criticando o governo (1). Não está posto. A margem é muito pequena ainda. A revista Fórum publicou uma pesquisa feita entre 14 e 17 de maio. 31,1% dos entrevistados ainda votariam em Bolsonaro (2). É o mesmo 1/3 de sempre.
A questão, no entanto, é que o vídeo reforça o discurso de uma ideologia que existe, é real. Não adianta jogar pra debaixo do tapete. Derrubar Bolsonaro agora é necessário? Sim, também acho que seja, mas não vamos conseguir fazê-lo pelos meios que estamos tentando. Por uma razão simples: não estamos conseguindo chegar nas pessoas.
Todo apoio que Bolsonaro perdeu desde as eleições deve-se única e exclusivamente à sua própria tosquice, à própria tosquice do seu (des)governo, deve-se única e exclusivamente aos seus próprios erros. Não fosse assim, não provaríamos o mel de expressões do tipo "Eu avisei!" com tamanha alegria infantil e debochada. Ela é a prova disso que estou dizendo.
Bolsonaro não vai cair, pelo menos não por hora. Ele não precisa cair. Ele será mantido ali, ele e sua corja, porque assim eles nos mantêm ocupados. Bolsonaro é um amuleto de hipnose coletiva. Ele também nos hipnotiza, à medida que pauta as discussões políticas. Que discussão política nós, da esquerda, pautamos? Nenhuma. Continuamos falando pra nós mesmos.
Bolsonaro não vai cair porque para as elites ele não precisa cair. E daí que o Brasil esteja sendo objeto do ridículo lá fora, desde aquela votação pelo Impeachment da Dilma em 2016. Ali, expunhamos toda a mediocridade da classe política brasileira (claro que estou sendo rasteiro aqui. Há muita gente boa na política). Mas mais do que expor nossa classe política, ali, era Bolsonaro quem estava sendo apresentado ao mundo. Ele é a representação do mesmo sentimento, do mesmo pensamento, do mesmo conservadorismo que levou às ruas "A marcha da família com Deus", em 1964. O mesmo sentimento. Precisamos encarar esse sentimento de frente, desmontar a ideologia conservadora expondo-lhe os ossos, o porão, o esgoto de suas residências. É preciso envergonhá-la de si.
O vídeo da reunião ministerial só reforça o mesmo discurso que elegeu Bolsonaro, o mesmo. É uma apologia à ignorância. Faz as pessoas sentirem orgulho da própria ignorância.
Quando insistimos em derrubar Bolsonaro pelo campo jurídico, caímos em duas graves falhas: 1) insistimos na judicialização da política e na politização da justiça, que são coisas que criticamos desde sempre; 2) nos distraímos da pauta principal: precisamos de uma narrativa que faça frente à narrativa deles. E não se trata só de enredo, trata-se de forma estética, de linguagem. Precisamos reaprender a falar a língua do povo, seus símbolos, seus modelos, seus valores, suas práticas, seu cotidiano.
Repito: Bolsonaro é um amuleto de hipnose coletiva. Se não fosse ele, seria outro.Se tivéssemos ganhado as eleições em 2018, essa ideologia conservadora viria na próxima (e com mais força) ou, quem sabe até, não tivéssemos sofrido outro golpe militar (aliás os militares já não estão no governo?)? Assim, ao nos distrairmos com as tolices de Bolsonaro, perdemos a oportunidade de ir sedimentando a nossa base, de ir politizando a nossa base.
Não derrubaremos Bolsonaro pela via jurídica, porque a lei não é questão de justiça, é questão de poder. Não vê quantos crimes de responsabilidade ele já cometeu? Qual crime de responsabilidade Dilma cometeu? Não vê que, ao publicar um vídeo confessando o próprio Caixa 2, o primeiro ministro da Casa Cilvil, Onyx Lorenzoni, zomba da nossa cara? Lula ia para a Casa Civil quando foi impedido pelo Gilmar Mendes e indiciado pelo Moro. Não vê? "Com o supremo, com tudo". O que aconteceria se os acampados e armados em frente ao Palácio do Planalto fossem do MST?
A lei não é questão de justiça, é questão de poder.
Só derrubaremos Bolsonaro pela via POLÍTICA. E não é a política partidária. A democracia representativa é uma farsa! É a política enquanto reflexão sobre nossa realidade, sobre nossa condição histórica, sobre nossa condição social. Por que vocês acham que a reforma de Temer continuada por Bolsonaro tirou a obrigatoriedade da Sociologia, da Filosofia e da História do currículo escolar?
Como já disse em outros textos, precisamos voltar a problematizar a vida, a política. A esquerda se rendeu à lógica eleitoreira. E agora à lógica da judicialização da política e à politização da justiça. Mas Bolsonaro não será derrubado pela via jurídica.
O vídeo da reunião ministerial implica os ministros e o próprio Bolsonaro juridicamente? Sim. Mas... e daí? O vídeo reforça uma ideologia: os militares não confiam no Congresso nem no STF e, embora também não confiem em Bolsonaro, confiam nos outros militares e generais que compõem o quadro. Não vai ter golpe porque o golpe já foi dado! Em 2016.
Bolsonaro está isolado, cada vez mais isolado. Encurralado, na verdade, encoleirado pelos militares e pelo judiciário, que o mantém lá porque ele é um ótimo amuleto de hipnose coletiva. A única chance que Bolsonaro tem de sair dessa sinuca de bico é instigando sua base como está fazendo.
E nós? O que faremos? (1) https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/2020/05/23/debate-sobre-reuniao-ministerial-gera-5-milhoes-de-tuites-diz-fgv (2) https://revistaforum.com.br/pesquisaforum/pesquisa-forum-31-dos-brasileiros-votariam-em-bolsonaro-se-a-eleicao-fosse-hoje/