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Lula e Bolsonaro, amuletos de hipnose coletiva

  • Léo Mackellene
  • 9 de jan. de 2020
  • 17 min de leitura

Atualizado: 19 de jun. de 2021

A crise da democracia representativa é a crise da forma Estado, que sofre o assédio constante das grandes corporações e do projeto de financeirização da economia. Esquerda e Direita – em regime de alternância – funcionam como amuletos de hipnose coletiva, no intuito de manter o frágil equilíbrio entre as necessidades das classes sociais sem, no entanto, questionar as estruturas do Mercado.

A eleição de Bolsonaro só confirma o que ficou ainda mais evidente com o golpe (ou impeachment, já tanto faz) de 2016: a Democracia Representativa faliu.

Mas como, se os políticos ainda arrebatam multidões, as massas festejam a vitória de seus candidatos como se fosse a vitória do seu time predileto, postam vídeos chorando emocionados com a cerimônia de posse, como é que se pode falar de falência da democracia representativa? A resposta não é imediata e a discussão não é meramente teórica. A crise da democracia representativa é a crise da forma Estado, da forma partido.

Ora, quem os políticos representam? A dicotomia maniqueísta que diz que “a Direita representa os ricos e a Esquerda, o povo” (identificando esse “povo” como a parte mais pobre da população) ou, noutra visão, “a Direita representa os ‘humanos direitos’; a Esquerda, uma facção criminosa”, nem de longe resolve a questão. Precisaremos ir mais fundo, analisando a estrutura e o funcionamento do próprio sistema democrático brasileiro.

Quem os políticos representam? O surto patriótico dos financiadores de campanha

O político é um produto. De uma indústria (ou indústrias, no plural) ou de uma empresa ou de um conglomerado de empresas. Não importa. O político é um produto como qualquer outro. O que leva uma empresa/indústria a investir dinheiro – estamos falando de seis a sete dígitos – em um político?

Usemos a Bradesco Saúde como exemplo, uma das cinco maiores financiadoras da campanha do deputado Eduardo Cunha (PMDB) para a Câmara Federal em 2013. Uma vez eleito, a primeira proposta que Eduardo Cunha apresentou foi a PEC 451/2014, que obrigava as empresas a pagarem plano saúde para seus funcionários. O que podia parecer, num primeiro momento, uma coisa ótima para o trabalhador – dado o atual estado de sucateamento da saúde pública – escondia, na verdade, um plano extremamente lucrativo para o banco que fornece justamente este serviço.

Outro exemplo: Beto Studart é um dos mais bem sucedidos empresários do ramo imobiliário em Fortaleza-CE, um dos maiores construtores do país. Sócio majoritário da BSPar Incorporações, seu poder de influenciar o segmento empresarial gerado e gestado na Federação das Indústrias do Ceará é reconhecido no meio político, o que faz dele uma peça fundamental para o processo eleitoral. Nas eleições de 2012 para a prefeitura de Fortaleza, afirma o jornal O Povo de 08 de outubro de 2012, todos os candidatos vieram ter com ele. “Fiz doações de campanha, tudo dentro da lei”, faz questão de acentuar, “para os quatro [prefeitáveis]: Heitor Férrer (PDT), Moroni Torgan (DEM), Roberto Cáudio (PSB) e Elmano Freitas (PT)”, e complementa, “Quando contribuo com os quatro, é porque entendo que qualquer um desses tem um alinhamento de compromissos que a Cidade pede. Meu movimento não é partidário”. “Vou votar nos quatro candidatos”, conclui brincando.

Roberto Cláudio (PSB) foi eleito prefeito de Fortaleza em 2012 com 53% dos votos. Desde o começo de seu primeiro ano de mandato, Roberto Cláudio enfrentou críticas e protestos e até uma greve de fome contra a construção de um viaduto que cortaria parte do Parque do Cocó, área de preservação ambiental na capital do Ceará ao lado do seu primeiro e maior grande empreendimento, o shopping Iguatemi, controlado por ninguém menos que o Grupo Jereissati. Sob protestos e embargos constantes que, graças à articulação política do prefeito e de aliados poderosos, logo foram superados, a obra foi concluída em novembro de 2014 e custou a bagatela de R$ 17 milhões 348 mil e 534 reais. Roberto Cláudio recebeu o prêmio “Destaque do ano” dado pelas construtoras locais.

Como se vê, a Democracia sofre, para ser polido, uma remodelagem na essência de sua representatividade. Ora, quem o político verdadeiramente representa? Interesses do povo (que povo?) ou interesses de empresas/empresários que lhe financiam? Isso quando não é ele próprio o empresário. Nas eleições de 2018, Henrique Meireles, alto executivo do sistema financeiro, investiu R$ 54 milhões na própria campanha. O que leva alguém a investir R$ 54 milhões numa campanha? A troco de quê? Amor patriótico? Tasso Jereissati, cacique nacional do PSDB, é outro exemplo. Um dos principais empresários do país, irmão do presidente do grupo que controla a maior rede de shopping centers e outlets do Brasil, Tasso Jereissati governou o Ceará, seu estado de origem, por mais de duas ocasiões e, nos intervalos de suas gestões, elegeu todos os candidatos indicados por ele, dentre eles, Ciro Gomes (PSDB, à época), em 1991.

O penúltimo trecho da fala do empreiteiro Beto Studart é revelador quanto ao que estamos discutindo: o mercado não é partidário. Isso teve implicações preponderantes, determinantes, melhor dizendo, nos últimos 30 anos, pelo menos, na história do país. A Folha de S. Paulo divulgou, no dia 22 de outubro de 2014, que a campanha de Dilma Roussef (PT) à reeleição em 2014 superou a monta de R$ 338 milhões, enquanto a de Aécio Neves (PSDB), R$ 300 milhões. Foi a campanha mais cara da história da República contemporânea. Ora, de onde vem esse dinheiro? Por que empresários financiam campanhas? Numa de suas delações premiadas, o empresário Marcelo Oderbecht, implicado no escândalo da Lava Jato, disse que a empresa paga propina desde o início da década de 1980. No dia 31 de janeiro de 2019, vieram à tona gravações telefônicas de uma conversa entre Renan Calheiros e Joesley Batista (o da JBS[1]) comemorando a reeleição de Dilma. Será um surto de patriotismo?!

A crise da representatividade e as Jornadas de Junho de 2013

Essa “crise” de representação não é nova, porém. Em 1920, no Ceará, os cearenses elegeram para vereador o bode Iôiô. Pra quem nunca ouviu falar dele: o bode Iôiô era uma personalidade local, apelidado assim porque perambulava pra lá e pra cá, entre a Praça do Ferreira e a Praia de Iracema, no centro de Fortaleza, com seu cheiro característico, sempre acompanhado de intelectuais, poetas, políticos e jornalistas, que lhe davam cerveja para beber, às vezes, no mesmo copo que bebiam.

...

Em 2010, o deputado federal mais bem votado do país foi o palhaço Tiririca, outro cearense. Foram 1.348.295 votos. “Voto de protesto” foi como definiram.

Eram o esboço mal-acabado dessa tragédia que hoje se repete como farsa: Bolsonaro.

A crise por representatividade atingiu o seu ápice nos movimentos de junho de 2013, nas chamadas Jornadas de Junho, uma mobilização popular de caráter apartidário e com certo grau de espontaneísmo que tomou conta das ruas dos grandes e médios centros do país. Bandeiras de partidos políticos eram rechaçadas veementemente, às vezes com violência física. Embora a oposição tentasse capitalizar os movimentos, Aécio Neves (PSDB), um dos principais líderes da oposição na época, foi extremamente hostilizado pelos manifestantes, tanto que ele teve que se retirar do local sob ameaças à sua integridade física. Apesar de terem iniciado com o movimento “passe-livre” e a questão dos 20 centavos de aumento nas passagens de ônibus, logo as reivindicações das Jornadas de Junho passaram a reinvidicar participação mais efetiva nas decisões políticas (as reuniões de Orçamento Participativo nos municípios não eram suficientes). Essa discussão evoluiu para uma severa crítica à democracia representativa e a favor de uma democracia mais direta. As bandeiras se ampliaram: propunham uma série de reformas, dentre elas as mais urgentes: a política e a tributária. Todas as regras do sistema estavam sendo profundamente questionadas.

As Jornadas de Junho de 2013 receberam apoio maciço da população brasileira. E essa adesão pôde ser observada não só pela quantidade de pessoas que foram às ruas participar dos protestos. Uma pesquisa do Ibope divulgada em agosto daquele ano, e realizada no final do mês de julho de 2013, identificou uma aprovação popular em torno de 84%.

No 1º turno das eleições de 2014, quando a polarização que vivemos hoje estava ainda no começo, os votos nulos, brancos e as abstenções atingiram 29,08% dos votos para o pleito presidencial. No pleito anterior, em 2010, esse número chegou a 26,20% dos votos. E, em 2006, 25,02%. No 2º turno do pleito presidencial de 2018, ápice da polarização em que vivemos, os votos nulos, brancos e abstenções somaram 30,84% dos votos. Mais do que uma insatisfação política, o crescimento desses números pode indicar o alcance do próprio limite da democracia representativa.

No artigo “Direito Social à Educação Política” publicado em 2011 no livro Justiça Social e Democracia, a autora, a profa. Dra. Gina Pompeu, da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), traz dados muito salutares acerca do eleitorado brasileiro, bem como questões relevantes ao problema da participação popular efetiva nas decisões políticas do país, sugerindo possíveis causas para o que chamou de “alheamento da população” dos processos políticos, ou a “decepção com a democracia representativa”, bem como à orfandade do cidadão diante do caos social e da crise do Estado democrático de Direito, o que, segundo ela, teria gerado uma espécie de desencantamento da pessoas para com a política.

Os mais de 30% de abstenções, votos nulos e brancos do pleito de 2018 podem ilustrar esse desencantamento geral com a política. A autora aponta, então, um movimento natural para fazer frente a esse densencantamento geral: a “pessoalização da política”.

O fim da democracia representativa e a pessoalização da política

A questão central das eleições de 2018 foi a crítica ao sistema político. A campanha de Bolsonaro foi toda montada sobre este argumento; por mais – é claro – que, uma vez chegando ao Planalto, ele tivesse que se vergar à velha política – como vem acontecendo. Bolsonaro capitalizou o discurso antipolítica que ganhou corpo desde as jornadas de junho de 2013 e ganhou o apoio das pessoas cansadas dessa política, com um discurso que repetiu à exaustão durante a campanha: “quando eu chegar lá, vou quebrar o sistema!”.

Tendo-se confundido a crítica ao sistema com a crítica ao Estado (desde críticas ao tamanho da máquina pública, à intervenção do Estado na economia, passando pelo desequilíbrio fiscal e pela justiça tributária), tanto do ponto de vista geopolítico (com as críticas ao fortalecimento de um certo capitalismo de estado, durante os governos petistas, alinhado a outros governos de esquerda principalmente na América Latina entendidos como ditaduras − leia-se Cuba e Venezuela) quanto do ponto de vista econômico, como isso deságua na eleição de Bolsonaro? Para entender esta pergunta, será necessário recorrermos, antes, à eleição de Lula, em 2002.

O caso Lula

Ciro Marcondes Filho, em seu livro A produção social da loucura, diz que “o homem que ocupa a cadeira de governante é absolutamente indiferente. O sistema funciona bem sem ele, permite-lhe ser extravagante, palhaço de circo, mocinho de cinema ou cantor de ópera. Sua figura é apenas resquício vivo, resto arqueológico de um período de política que já desapareceu, porque não há mais políticos”. O livro foi escrito há 16 anos. Mas não há nada mais atual.

A Democracia representativa é um modelo de organização social político-jurídica e, como tal, é uma narrativa. O equilíbrio lógico-discursivo dessa narrativa é mantido pelos amuletos de hipnose coletiva que ele consegue produzir e emplacar. A história da eleição de Lula é ilustrativa dessa condição.

Lula sempre foi um conciliador. Líder sindical desde o começo de sua vida política, sempre esteve numa espécie de centrão: entre o empregado e o patrão, desde os discursos históricos (dignos das grandes superproduções cinematográficas) feitos em cima da boleia de um caminhão ou do capô de um fusca e passados adiante boca a boca, palavra por palavra, frase por frase, já que lhe faltava um microfone ou megafone.

Em 2002, quando foi eleito, não foi diferente. Estávamos no meio da organização de um bloco econômico cujo modelo se debatia naquele momento: ALCA ou MERCOSUL? O primeiro seria liderado pelos EUA. No segundo, os EUA seriam só uma espécie de parceiro comercial. Sem função preponderante, ele não ditaria as regras da organização. Havia grupos organizados nas mais diversas esferas discutindo isso, das associações de bairro aos ciclos acadêmicos; com manifestações de rua e debates acalourados sobre. Tal como a força das Ligas camponesas, responsáveis pela ascensão de João Goulart em 1961, em 2002, o MST era um movimento tão importante e ameaçador das estruturas sociais que passou a ser monitorado pela CIA. As taxas de mortalidade infantil vítimas da fome nos anos 80, 90, faziam encher boeings e mais boeings todo ano[2]. O país ameaçava entrar em convulsão. O capital percebeu isso e “permitiu” ser “governado” pelo maior representante da classe trabalhadora desde a abertura política: Luís Inácio Lula da Silva. Mas havia uma condição tácita: as estruturas sociais e com elas o modelo de administração do capital não poderiam ser questionados.

O sociólogo Chico de Oliveira, professor da USP, em dois artigos publicados pela revista Piauí, “Hegemonia às avessas” (janeiro de 2007) e “O avesso do avesso” (outubro de 2009), confirma essa percepção. Membro de uma das primeiras diretorias do PT, Chico de Oliveira saiu do partido logo após a primeira eleição de Lula.

A primeira eleição de Lula foi, antes, uma forma de desarticulação dos movimentos sociais que, à época, ameaçavam entrar em convulsão e questionar a ordem hegemônica.

Eleger Lula, naquele momento, era uma forma de jogar água na fervura: todos os movimentos sociais desmontados pelo golpe militar de 64 e que passaram a se reorganizar, primeiro, clandestinamente, depois, abertamente, após as eleições frustradas de 1989 (quando Lula perdeu para Collor, num debate histórico reconhecidamente manipulado pela Rede Globo), em 2002, esses movimentos ameaçavam entrar em convulsão. Após as eleições de Lula, a euforia da vitória apaziguou os ânimos (nascia aqui a chamada “esquerda festiva”?); tanto que a frase mais “de ponta” proferida pelos bares e nas reuniões da esquerda para baixar o próprio facho era “Calma! Nós ganhamos as eleições, mas não o poder”. De fato!

As linhas que, pós-abertura política (desde a década de 80 até o início dos anos 2000), diferenciavam a direita da esquerda eram muito claras: a direita era capitalista e a esquerda, anticapitalista (não necessariamente “comunista”; havia também os “anarquistas”, que viviam num plano teórico da política tão abstrato que não sabiam muito bem o que propunham; havia também os movimentos ditos “emancipadores”, que também, naquele momento, não sabiam muito bem o que propor mas sabiam o que não queriam e sabiam onde queriam chegar). Mas a tão esperada superação do capital, esperança que acreditávamos intrínseca à ascensão de um governo de esquerda, não veio. Belchior, mais uma vez, teria razão: “e nossa esperança de jovens não aconteceu. E nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não”.

Lula era (e ainda é) o maior representante da esquerda no país. Ciro Gomes intenta assumir este posto – agora que “o Lula tá preso, ô babaca!” −, mas talvez tenha acordado tarde demais para a realidade de que precisa chegar até as bases, de onde Lula veio, de onde Boulos vem. Ao longo do governo do PT, da era-Lula à era-Dilma, o que ocorreu de fato não foi a superação das relações capitalistas, como esperávamos, ou a instauração de um comunismo, como tanto temiam (e ainda temem, os correligionários do que o jornalista Reinaldo Azevedo chama de “Direita chucra”). Os governos do PT foram, se muito, um ensaio de socialismo, mas muito mais próximo de um capitalismo de estado.

Todos os programas de governo foram voltados para a democratização do consumo: “Minha casa, minha vida”, a redução do IPI, “Minha casa melhor”... E até o bolsa-família, originalmente destinado à alimentação, para a compra de cestas básicas (o que durante algum tempo funcionou), logo foi usado como instrumento para reaquecer o mercado. Quem não lembra do episódio da calça de mais de 300 reais pra uma jovem de 16 anos?!

Todas as políticas de infraestrutura e educação também foram pensadas para atender a demandas de mercado: a construção de hidrelétricas, portos, obras de transposição, o PAC, as formas de subsídio do governo para a gasolina, gás de cozinha, processos de interiorização do Ensino Superior, construção de escolas técnicas e até o discurso propagado pela imprensa sobre a qualidade do Ensino técnico e a defasagem do Ensino Superior foram orquestrados no sentido mesmo de atender às necessidades do mercado: enaltecendo a formação rápida da mão-de-obra técnica qualificada e considerando o caráter pouco prático, muito teórico do Ensino Superior em geral. E a pior de todas as chagas: a financeirização da economia. De fato, os bancos lucraram 8 vezes mais na era-Lula que na era-FHC. E isso não é uma acusação! É um dado!

No velho manual da política moderna, O príncipe, Maquiavel já chama atenção para um ponto importante no sentido de entendermos o limite dos governos eu tem sido eleitos no Brasil desde 2002. Segundo o político e filósofo italiano, “uma mudança sempre lança as bases para a edificação de outra”. E foi o que aconteceu com Lula. Ao dar condições para a ampliação de uma classe média (uma classe média pouco instruída para o bem comum e demasiadamente desejante dos privilégios dos ricos), Lula alimentou a serpente que, não satisfeita com as condições que conquistou, queria mais. Esse parece ter sido um fenômeno mundial. Em 2017, os editores Dawid Danilo Bartelt e Axel Harneit-Sievers publicam The New Middle Class in India and Brazil, para estudar o mesmo fenômeno na Índia, que se soma, claro, à incidência de uma espécie de Nova Ordem Mundial, através do BRICS.

Sérgio Fausto, superintendente da Fundação FHC e tucano de carteirinha, publicou na edição de fevereiro de 2019 da revista Piauí, nº 149, p. 25, o artigo intitulado “O ponto a que chegamos”, onde ele faz uma análise nesse mesmo sentido. Segundo ele, “uma vez atendidas as expectativas básicas de uma população antes sem acesso a determinados bens e serviços, surgem no momento seguinte novas e mais exigentes expectativas dessa mesma população sobre a quantidade e qualidade do que lhe foi ofertado inicialmente”. Foi isso o que garantiu a derrocada da esquerda tanto na Índia quanto aqui. Ainda segundo Fausto, “cidadãos portadores de direitos e, ao mesmo tempo, contribuintes, sabedores do esforço tributário que o Estado lhes exige, se veem, no entanto, compelidos a comparar no mercado privado serviços que o Estado estaria constitucionalmente obrigado a lhes oferecer. O mal-estar dessa ‘contradição’ veio à tona nas manifestações de 2013. [...] Cresceu o sentimento de que ‘eles’ (o Estado, a classe política, o governo) prometem, me cobram, eu pago (embora não receba), e eles ainda me roubam” (FAUSTO, Sérgio. “O ponto a que chegamos”. In: Piauí, nº 149. São Paulo, Fevereiro de 2019. p. 22-28)

Um outro elemento que fora alimentado pelos governos do PT e que contribuiu enormemente para sua derrocada foi a financeirização da economia, que a todo tempo atuou (e ainda atua) para o que Bauman chama de processo de substituição da modernidade pesada (e aqui é irônico que Lula seja um ex-torneiro mecânico) para a modernidade líquida (com um Ministro da Economia como Paulo Guedes, formado pelo que se convencionou chamar de “velha escola liberal de Chicago”). Seja como for, são modelos de administração pública.

José Dirceu, em entrevista ao El país, em 26 de setembro de 2018, diz que havia duas prioridades nos governos Lula: 1) Fazer reforma política, resolver o problema das Forças Armadas, resolver o problema da riqueza e da renda ou 2) atacar a pobreza e a miséria, fazer o Brasil crescer, ocupar um espaço na América Latina, ocupar o espaço que o Brasil tem no mundo (ou tinha, antes do projeto de ridicularização internacional do Brasil, que começou com a exibição das 6 horas ininterruptas das vergonhosas dedicatórias dos deputados federais quando da votação do impeachment de Dilma Rousseff, naquele fatídico domingo, 16 de abril de 2016. Dia escolhido à dedo?). Lula optou pela segunda. Dirceu reconhece a ausência de condições políticas para a primeira. O coro geral sempre recorre ao argumento de que, “no primeiro mandato, Lula foi eleito com 61,27% dos votos! Podia ter feito as reformas naquele momento!”. É preciso lembrar, no entanto, Chico de Oliveira: a hegemonia teria aceitado ser governada pela esquerda desde que a estrutura não fosse questionada.

Com as políticas de democratização do consumo aprofundando as relações capitalistas no país – à medida que as democratizava −, o PT foi o mais longe que um partido de esquerda poderia ter ido dentro dessa estrutura, o presidencialismo de coalizão. Tanto que, no momento em que o PT propôs uma mudança verdadeiramente estrutural − a revisão da alíquota de impostos retidos na fonte, a taxação das grandes fortunas, a taxação das grandes transações financeiras, a reforma política etc. –pós-jornadas de junho de 2013 –, a estrutura da ordem hegemônica se sentiu ameaçada e a esquerda sofreu um golpe (ou impeachment, tanto faz).

O jurista e sociólogo Boaventura de Sousa Santos, numa entrevista publicada pela Revista do Instituto Humanitas Unisinos em dezembro de 2016, analisa que “o avanço da esquerda na primeira década do milênio […] foi possível devido a uma conjuntura excepcional que não se repetirá nos anos mais próximos: a subida dos preços dos produtos primários, agrícolas e minérios, devido à explosão da China. Este fato, ao mesmo tempo que remetia estes países para a continuidade com o colonialismo (fornecedores de matérias-primas e que agora chegou a provocar a desindustrialização do Brasil), permitiu aos governos de esquerda efetuar uma impressionante redistribuição de riqueza sem alterar o modelo de desenvolvimento ou o sistema político. No momento em que tal deixou de ser possível, o capitalismo quis manter a sua rentabilidade a todo custo e conseguiu o seu objetivo facilmente precisamente porque não tinha havido mudança no sistema político (e na prática política), nem reforma tributária, bancária ou dos media”.

O caso Bolsonaro

O conjunto de condicionais, “se isso... se aquilo”, para tentar explicar por que algo na história de uma sociedade não aconteceu sempre é múltiplo e vário, e nunca passam de meras especulações. Mas arrisco um palpite: para vencer as eleições presidenciais de 2018, o PT precisaria ter voltado a ser o antigo PT, problematizando não só as questões sociais − como fazia antes de focar na “lógica eleitoral”, como diz o primeiro estatutário do PT, Plínio de Arruda Sampaio, em entrevista à Caros Amigos, nº 98, em Maio de 2005 – mas, principalmente, questionando a estrutura: todo o esquema de toma-lá-dá-cá, a troca de “aprova meu PL que eu aprovo a tua PEC”, vota a favor dessa lei, desse programa, que eu te dou um ministério, que eu te dou a chefia d’uma estatal, os financiamentos de campanha etc. Não o fez por quê? Isto também está no terreno das especulações. A meu ver, não o fez porque assim denunciaria toda a estrutura política que monta o atual Estado Democrático Brasileiro e, assim, exporia suas vísceras de maneira irreversível. O cadáver putrefato da Democracia Representativa destruiria todo o circo pretensamente republicano que se armou bem diante dos nossos olhos. Seria o fim da forma Partido e a própria forma Estado perigaria ser demolida.

Bolsonaro cresceu na campanha prometendo a demolição do atual sistema político brasileiro. A pergunta não é “por que não o faz?”, é “por que os eleitores que o elegeram para tanto, mesmo diante de todo o esquema amplamente denunciado de Flávio Bolsonaro, mesmo diante de toda a negociata para a aprovação da PEC da Previdência, mesmo diante de um Ministro Caixa 2 confesso, um Ministro condenado por improbidade administrativa, por que, diante de tudo isso, os eleitores de Bolsonaro, que o elegeram para que ele demolisse esse sistema político, se calam?”. Minha resposta para essa pergunta – também no terreno das especulações − é que, tal como Lula em 2002, Bolsonaro é um amuleto de hipnose coletiva. O “mito”. É como seus eleitores o chamam. Só que agora a face desse amuleto está voltada para a direita − sim, somos um joguete nas mãos do poder. Alguns enxergam na alternância de poder uma chave para o equilíbrio republicano. Mas se observarmos a história do país, veremos que a Direita esteve no poder quase todo o tempo, dos tempos da velha colônia à República Velha e de lá até agora (o governo do PT não é a esquerda, portanto, mas à esquerda).

Na abertura política, gritávamos e pixávamos os muros com os dizeres "Sejamos realistas, exijamos o impossível", inspirados nos protestos de Maio de 68, na França. A Esquerda tinha um modelo claro: a luta anticapitalista; enquanto a Direita era a própria personificação do Capital. Ainda estávamos de ressaca da queda do Muro de Berlim. Hoje, a esquerda se dobrou à política, ciência do possível, e ao mercado. E Lula é o cientista-Mor desta fórmula baseada no modelo conciliador de classes; também pudera: líder sindical desde o começo! Ora, o que não é a essência do sindicato senão a conciliação?

Lula jamais seria (ou será) um Revolucionário, não na perspectiva que nós sempre tivemos: a da superação do capital. Não se trata de jogar Lula às favas, nem desprezar seu precioso legado, mas de perceber que, dentro da atual estrutura da democracia representativa, o PT foi o mais longe que um partido de esquerda poderia ter ido. Será preciso compreender – e aceitar (essa é a parte mais difícil) − que Lula já cumpriu seu papel histórico, o mais importante desde Vargas, mas que agora o PT precisa refundar-se como esquerda.

Já Bolsonaro, como amuleto de hipnose coletiva que é, representa um conservadorismo histórico vinculado ainda à antiga Marcha da Família com Deus, de março de 1964. Esse conservadorismo de costumes junto a um pretenso liberalismo econômico que prevê a diminuição do Estado e a negociação de Direitos trabalhistas em troca de trabalho foi o que deram 55,13% dos votos válidos ao presidente eleito Jair Bolsonaro. O sorriso nos lábios dos eleitores de Bolsonaro a cada tweet seu é a mais pura manifestação desse poder que ele tem como amuleto de hipnose coletiva.

Vocês viram? Durante a campanha presidencial de 2018, enquanto Bolsonaro esperava pela apresentação dos pilotos acrobáticos na Praia da Barra da Tijuca, um senhor gritava repetidamente da areia “Bolsonaro, eu te amo! Eu te amo! Jesus te ama! Jesus te ama!”. Já quase sem voz, de costas para o mar e para a apresentação da esquadrilha da fumaça, o senhor implorava por um aceno, ao menos, de Jair Bolsonaro que viesse em sua direção. Pois é!

Léo Mackellene é mestre em “Literatura e Práticas sociais” pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Argumentação jurídica no curso de Direito e Editor de Publicações da Faculdade Luciano Feijão (FLF), em Sobral-CE. Escritor membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste (ALANE). Autor de nove livros, dentre eles o romance Como gota de óleo na superfície da água (Radiadora, 2017). E-mail: leomackellene@gmail.com

[1] A JBS foi envolvida, no primeiro semestre de 2017, pela Polícia Federal, na “Operação Carne Fraca”, que identificou que ela e mais outro grande conglomerado frigorífico brasileiro, a Friboi, estavam pondo no mercado carne vencida e, em alguns casos, moída com papelão.

[2] Noticiado pelo Jornal Nacional em uma série de reportagens sobre o assunto que foi ao ar em 2001. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UI3yFKVrE4I. Acesso em 26/02/2019.

 
 
 

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