No Brasil, livro é coisa de rico?
- Leo Mackellene
- 3 de out. de 2020
- 14 min de leitura
Atualizado: 7 de out. de 2020
Com altíssimos níveis de analfabetismo, desde o 1º censo do IBGE, o livro foi alçado, no imaginário popular, a bem cultural de consumo de uma classe social privilegiada. A reforma tributária proposta pelo Governo Federal em 2020 usa exatamente esse argumento para justificar a revogação da isenção de impostos sobre o livro, garantida desde 1946. Isso traz implicações sérias para todo o mercado editorial e, consequentemente, para um campo que muito nos interessa: o do estabelecimento de uma cultura letrada.

Texto originalmente publicado no Guia Dragão, revista eletrônica do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura do Ceará, no dia 14 de setembro de 2020.
Mercado Editorial no e do Ceará
De tempos em tempos, passamos, no Brasil, por “reformas”, a depender do grupo político que alcança o poder. Só de Constituições, desde a primeira, em 1824, temos sete. E a mais recente, aprovada em 1988, acumula já mais de 100 alterações; as chamadas “Emendas Constitucionais”. De caráter menor, mas não menos impactantes são as “reformas”, como a tão sonhada “reforma agrária” (que deveria ter acontecido em 1888, junto à Lei Áurea; afinal, para onde iriam os ex-escravos libertos com a lei?) ou a famigerada “reforma da previdência”; também a “reforma administrativa”, diminuindo o número de ministérios, extinguindo alguns, fundindo outros; a “reforma política” – como a antiga discussão sobre regime parlamentarista ou presidencialista – e outras reformas como a “reforma tributária”.
Em julho desse ano, o governo federal propôs uma das mais esperadas reformas desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a “reforma tributária” (PL 3.887/2020). Considerada desdobramento importante da reforma administrativa (que visa “diminuir o tamanho e o peso do Estado”), a reforma tributária consiste, grosso modo, em rever a incisão de impostos sobre bens, produtos e serviços brasileiros. De acordo com a reforma proposta pelo governo Bolsonaro, um dos itens que passarão a ser tributados é o livro. Perguntado sobre o porquê desta resolução, o Ministro da Economia Paulo Guedes respondeu que “tem que isentar o mais pobre e não as pessoas que podem pagar pelo livro”. Parece um raciocínio lógico, justo, contudo, o ministro parte de uma premissa sobre a qual precisamos nos perguntar: no Brasil, livro é coisa de rico?
Decidimos lançar a pergunta nos stories do Guia Dragão e a resposta nos surpreendeu. Aproximadamente 60% das pessoas que responderam disseram que sim, que, no Brasil, livro é sim coisa de rico. 40% responderam que não. É preciso entender essas respostas como sintoma de um fenômeno cultural que é o livro, ao passo que também é preciso entender a gênese do mito que sustenta o desejo do governo em tributar o livro.
BREVE HISTÓRIA DA LEITURA E DA TRIBUTAÇÃO DO LIVRO NO BRASIL
De autoria do deputado constituinte e escritor Jorge Amado, a primeira proposta de isenção de impostos sobre o livro acabou incorporando a Constituição de 1946. O inciso V do art. 31 vetava à União, aos estados e municípios lançar impostos sobre “papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros”. Na década de 40, aponta o Mapa do Analfabetismo no Brasil, estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), a taxa de analfabetismo era 56,1%. O número é alto, mas nada comparado ao que foi identificado no primeiro censo do IBGE, em 1872, segundo o qual mais de 82% da população brasileira não sabia ler. E estamos falando da época de ouro da literatura nacional, em que escreviam autores como Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio Azevedo e todos os grandes escritores do século XIX. Pois bem! A medida proposta por Jorge Amado visava justamente diminuir o preço do livro afim de democratizar o acesso a ele.
O art. 150 da Constituição de 1988 reitera a medida, vetando, dessa vez, a incidência de impostos não só sobre o papel destinado à impressão de livros, periódicos e jornais, mas sobre os próprios “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”; além da lei nº 10.865/2004, que reduz, no inciso VI do art. 28, a 0 (zero) “as alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda, no mercado interno, de livros”. No ano anterior, havia sido aprovada a Política Nacional do Livro (Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003), que previa, dentre outros incentivos, a alíquota zero sobre toda a cadeia produtiva do livro.
A pesquisa Retratos da leitura no Brasil, mais importante medidor do hábito de leitura dos brasileiros, identificou, em 2019, uma taxa de leitura de 4,6 livros por habitante, sendo que nem 2,5 desses livros foram lidos até o final, e apenas 2,88, lidos por vontade própria, 42% dos entrevistados, declarando-se leitores da Bíblia. Em 2019, o Instituto Pró-Livro, que faz pesquisas periódicas sobre livros e leitura no Brasil, listou os 28 livros mais citados, por ordem decrescente. A Bíblia está no topo. Abaixo estão: A Cabana, O pequeno príncipe, Turma da Mônica, A culpa é das estrelas, Harry Potter, Diário de um Banana, Violetas na Janela, Crepúsculo, Cinquenta tons de cinza, Dom Casmurro, Sítio do Pica Pau Amarelo, Como eu era antes de você, A moreninha, Casamento blindado, Iracema, O diário de Anne Frank. Ou seja, na sua maioria, livros que se encaixam no nicho das obras comerciais. Entender o perfil dos leitores auxilia a pintar esse quadro geral do mercado editorial brasileiro.
Uma pesquisa realizada pelo IBGE entre 2017 e 2018, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), concluiu que 76,4% dos livros no Brasil são consumidos por famílias fora da faixa da maior renda mensal. 45,7%, consumidos por famílias com renda abaixo de R$ 5 mil. O estudo concluiu ainda que famílias consideradas “ricas” são responsáveis por apenas 23,6% do consumo de livros no país. Nesta semana, o Instituto Pró-Livro e o Itaú Cultural devem divulgar os resultados da mais recente Retratos da Leitura no Brasil, mas o podcast da PublishNews da semana passada apresentou um dado importante no desenho do perfil consumidor de livros: segundo Zoara Faílla, coordenadora da pesquisa, 27 milhões de brasileiros identificados na chamada classe C são compradores de livros.
A proposta do governo prevê cobrança de 12% de imposto sobre o valor do livro. Chamado de “Contribuição sobre Bens e Serviços” (CBS), o recente imposto vai impactar algo em torno de 60% do lucro bruto das editoras e 50% do lucro das livrarias. O cálculo é do Sindicato Nacional dos Editores de Livros.
O QUE DIZEM ESCRITORES, EDITORES, LIVREIROS E LEITORES?
Ao longo da semana, entrevistamos editores e escritores cearenses, donos de livrarias, professores, leitores assíduos, membros de clubes de leitura, para saber o que acham disso tudo.
Em julho de 2016, no bairro do Benfica, foi inaugurada a Livraria Lamarca, que logo entraria no circuito cultural da cidade com seus saraus toda sexta à noite, com a missão de “facilitar o acesso aos livros relacionados ao pensamento crítico e que trouxessem em si a possibilidade de revolucionar mentes e mundos. A ideia era comercializar livros negligenciados pelas grandes livrarias e mídia”, conta Tammy Barbosa, sócia-fundadora da livraria. “Sou graduada em Serviço Social”, continua, “e o Guarany [o outro sócio-fundador da Lamarca], em administração, e, nesses campos, construímos uma militância e um processo formativo muito ligado às lutas políticas. O Guarany pegou a tarefa da venda dos livros da editora Expressão Popular, que é uma editora militante. Quando essa tarefa começou a demandar muito tempo dele, montamos banquinhas nos eventos universitários. Não existia um espaço físico que o público pudesse acessar esses livros quando necessitava. O público nos apresentou essa carência e, então, enxergamos a possibilidade de abrir uma livraria”, lembra. “Quando fomos estudar um pouco o mercado no qual estávamos decidindo entrar, percebemos que as livrarias estavam com as suas prateleiras lotadas de best-sellers, de livros de auto-ajuda e de livros que enalteciam figuras fascistas que vinham crescendo no terreno político do Brasil e do mundo. Para nós só fazia sentido ter uma livraria que fosse o oposto dessas”.
Guarany, complementando a fala da sócia, lembra o relatório Desempenho Real do Mercado Livreiro, publicado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), que concluiu que, entre 2006 e 2018, houve uma retração no mercado editorial de 44,4%, apesar da diminuição drástica na taxa de analfabetismo, em período equivalente; “saímos de uma taxa de 13% da população, em 2002, a 4%, em 2015”, relata ele; “claro que precisamos considerar o analfabetismo funcional, mas esse número reduziu de 39% a 27%”. Guarany aponta uma contradição que precisa ser elucidada: ele lembra que essa retração forte do mercado acontece quando “cerca de 18% dos brasileiros entram na classe média. Então, a gente tem o aumento na quantidade de gente que sabe ler e o aumento de pessoas com potencial de compra; a classe média não tem grana pra ter uma mega biblioteca, mas tem grana pra ter uma biblioteca em casa”.
Por que a retração do mercado, então? A pesquisa Retratos da leitura no Brasil aponta que, entre 2015 e 2019, o país perdeu 4,6 milhões de leitores, e que a perda mais significativa foi entre leitores das classes A e B. A pesquisa associa essa perda ao crescimento do consumo de serviços de streamings como Spotify e Netflix, as mais famosas plataformas de música e de filme, respectivamente, no Brasil.
O coletivo editorial formado por mulheres, a editora Aliás, gerenciada por Anna K. Lima, Isabel Costa e Jéssica Gabrielle Lima, em matéria publicada pelo Diário do Nordeste sobre o assunto, dimensiona que “a partir do fim dessa imunidade tributária que havia antes, vai ser impossível para todo o ciclo produtivo do livro e da leitura manter os valores que já são cobrados hoje pelo livro. Com eles mais caros, o acesso às obras, que já é dificultoso, ficará cada vez pior”.
O poeta Alan Mendonça constrói uma bonita analogia sobre a proposta do governo. Diz ele que “quando há a ideia do livro ser isento de imposto, é como se dissesse ‘A literatura feita pelo povo não precisa mais pagar imposto!’. Há, nisso, uma ideia – Romântica, até – de que a literatura pertence ao povo. Quando o governo, entretanto, quer retomar o imposto sobre o livro, ele nega isso. A compreensão do governo de que a literatura é para uma elite é, a princípio, a ideia de que a literatura não pertence ao povo, depois, a afirmação de que a literatura não é para o povo, é para alguns que podem pagar por ela”. O poeta lembra que, no geral, as grandes editoras repassam ao autor apenas 10% do valor de capa. Ao incidir um imposto de 12% sobre o preço do livro, o governo intenta, então, ganhar mais do que o próprio autor do livro. “É uma proposta que despercebe a literatura como patrimônio cultural da civilização brasileira”, conclui.
Nathan Matos é um dos fundadores, junto com os poetas Madjer Pontes e Talles Azigon, da editora cearense independente SubstÂnsia. Fundada em 2014, o selo já publicou mais de trinta títulos de autores independentes, que bancam as suas próprias obras, e nasceu, segundo Nathan, da ânsia de “publicar pessoas que a gente acreditava que já deveriam ter livros publicados e não tinham, como Ricardo Guilherme, Ayla Andrade, Silvia Moura, Raisa Christina…”.
Nathan radicou-se em Minas Gerais, por conta do doutorado em Literaturas Modernas e Contemporâneas na UFMG, onde fundou, com Camila Araújo, a editora independente Moinhos, com a ideia original de publicar títulos mais comerciais, “grandes clássicos da literatura brasileira e estrangeiras, buscando viabilizar obras ainda inéditas no país”. Para o editor, o problema do consumo do livro, no entanto, “é que faltam livrarias no país, faltam ações de incentivo por parte do governo, faltam bibliotecas no país. O que não falta é vontade de ler, independente da classe social das pessoas”. Nathan lembra o caso da Biblioteca Comunitária do Curió, mantida pelo antigo parceiro, o poeta Talles Azigon. “Se você perguntar a ele se teve um dia sequer, antes da pandemia, em que faltasse gente visitando a biblioteca, ele vai dizer que não, que todo dia tinha gente lá, criança, adolescente, gente mais idosa, que ia lá pegar um livro pra ler. Então, o que falta não são leitores, são pontos de acesso para ler”, e arremata, “Dizer que ‘o Brasil não é um país de leitores’ realmente é uma falácia!”.
Talles Azigon é poeta hoje extremamente identificado com um movimento espontâneo das periferias dos centros urbanos chamado SLAM, competições de poesia falada frequentadas por multidões de jovens poetas que lotam praças e outros espaços públicos. A cena é apoteótica: os jovens se aglomeram em torno dos competidores como grandes torcidas organizadas e gritam com alegria eufórica – mas não vazia – seus poemas de resistência sobre a condição social dos grupos periféricos, sobre a luta das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+ contra o machismo, o racismo e a homofobia estruturais.
Embora predominantemente orais, ano passado foi publicada a coletânea A poesia falada invade a cena em Sobral, organizada em parceria pela Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral, e a Uniperiferias. A coletânea reúne treze poetas e poetisas de destaque no cenário SLAM do estado: Fran Nascimento, Bicha Poética, Cacheada Santtos, Layze Martins, Sabrinah Sá, Kaio Vieiras, Diego Clementino dentre outros. Talles edita, desde 2017, a coletânea de poemas Saral, “livre de interferência de editoras, sem preço fixo e de alcance amplo entre leitores e jovens das comunidades e periferias de Fortaleza”.
A Radiadora era, inicialmente, um selo exclusivamente musical, idealizado pelo poeta e compositor Alan Mendonça, em 2007, que chegou a lançar cerca de 80 discos, todos de música cearense. Só em 2017 o selo se transformou em editora de livros, com o objetivo de publicar autores de uma outra periferia, o interior do estado, com poetas como Dércio Braúna, finalista do Prêmio Oceanos 2020, ao lado de Chico Buarque e Mia Couto, Valdi Ferreira Lima, Nirton Venâncio. “Eu percebo o Ceará como ‘Siará Grande’”, diz o poeta e editor, “E, infelizmente, o Ceará é um estado cuja gestão cultural e seus equipamentos são, em sua grande maioria, voltados para a capital − e acaba que, a falta de políticas públicas das cidades do interior do estado, acaba por invisibilizar, por um déficit de comunicação até, a arte feita no interior. E, no caso da literatura, ela é muito, muito, muito potente”. Vide o recente caso do poeta Mailson Furtado, de Varjota, município de 20 mil habitantes localizado a 70 km de Sobral, que, em 2018, ganhou o mais cobiçado prêmio do mercado editorial brasileiro, o Prêmio Jabuti, e na categoria “Livro do ano”, pela qual concorrem todos os outros livros vencedores nas categorias específicas.
Alan Mendonça afirma que, nos últimos anos, “por uma série de fatores, ficou mais fácil se chegar ao livro. As gráficas passaram a trabalhar ‘por demanda’, com menor tiragem, o que facilitou se chegar à obra em si, o livro. Isso abriu um leque maior de pessoas escrevendo e publicando livros. Independente de se ter um gasto maior por valor unitário, a possibilidade de menor tiragem – 100, 200, quando muito, 300 exemplares – tornou o livro, para os autores e para as pequenas editoras, algo mais acessível”.
Como fatores responsáveis por esse maior acesso ao autor que deseja ver seus poemas, seus contos, seus textos reunidos em livro, o editor aponta o avanço tecnológico com o maior acesso a programas de edição, o maior número de editoras independentes; do ponto de vista burocrático, a política pública do MEI (Microempreendedor Individual) facilitando o CNPJ a quem se interessasse por lançar uma editora no mercado etc. Contudo, Alan aponta um aspecto negativo dessa “democratização”: a baixa tiragem reflete a baixa distribuição e, consequentemente, o baixo consumo das obras. Segundo ele, isso acontece por vários motivos. “Em Fortaleza, o número de livrarias é muito pequeno, no interior, então, não tenho o número de cidades que tenham livrarias, mas acredito que sejam muito poucas, muito poucas. A única livraria, em Fortaleza, aos moldes interessantes, como a gente sonha livrarias, como espaço cultural, lugar de debates, de encontros, é a Lamarca. As outras são livrarias de shoppings, que não estão ligadas a uma gestão cultural vinculada a uma política de desenvolvimento de capilaridades sócioculturais que faça a cidade ser mais possível para seus artistas, seus fazedores de arte”.
O poeta-editor também aponta uma contradição que também precisa ser elucidada. Segundo ele, “há uma quantidade significativa de títulos no mercado cearense, [ao mesmo tempo em que] há uma dificuldade de se encontrar público consumidor de livro; há mais facilidade de encontrar público consumidor de serviços, como o de edição e revisão de títulos, cursos de escrita criativa… enfim, é esse mercado de serviços que tem mantido as editoras independentes”.
O professor Igor Mapurunga, diretor da Escola Estadual de Tempo Integral Irmã Lins, em Viçosa do Ceará, afirma que “a maior parte da população não tem como comprar livros. Uma família que recebe até dois salários mínimos e tem filhos pra criar, tem as contas de casa…, não consegue pagar 50, 60, 70 reais por um livro. Como a gente sabe, há livros até de mais de 100 reais. Essa família, com certeza, optará por adquirir, ao invés de um livro, um produto de necessidade mais imediata”.
Rafael Fernandes é membro de um clube de leitura vinculado à hoje fechada livraria Pensar, única livraria física de Sobral, cidade de mais de 200 mil habitantes e que é considerada modelo de educação no país. Polo universitário da Região Norte, Sobral conta com 57 cursos de graduação e mais de 20 mil alunos de IES públicas e privadas. Há, no entanto, quatro bibliotecas públicas na cidade, a maior delas é a Biblioteca Municipal Lustosa da Costa, com aproximadamente 40 mil títulos. As outras são bibliotecas vinculadas à Universidade Estadual Vale do Acaraú e ao campus de Sobral da Universidade Federal do Ceará. Perguntado sobre se livro é coisa de rico, Rafael responde que, “sendo rigoroso, acho livro caro. Isso tende a acarretar um certo elitismo no acesso a ele. Um livro pode, não raramente, chegar a quase 10% do salário-mínimo. Mas não é coisa de rico. Existem outros meios de acesso a ele e existe interesse, bem ou mal, de todas as classes econômicas”.
Carlos Haroldo, membro do mesmo clube de leitura, afirma que “livro, em geral, é caro. A cadeia de distribuição é cara (estrutura, transporte, trabalho das editoras, distribuidoras, lojas etc.). Mas, como Rafael falou, há outros acessos. Não acho que a falta de acesso a livros seja um fator dos mais determinantes para que não se leia muito. Bem ou mal, as pessoas não ficam sem internet, sem acesso a redes sociais ou a planos de TV e nem sem o ingresso do forró”. Para Normando, membro do mesmo clube de leitura, “Para parte significativa do público geral, o livro não é um consumo de primeira necessidade. Não está na ordem do dia de nossas prioridades. Sendo assim, eis a questão: o livro é caro porque a demanda é pequena ou a demanda é pequena porque o livro é caro?!”.
A GÊNESE DO MITO
Seja como for, a chegada do livro no Brasil estabeleceu uma fissura social profunda entre o (dito) “homem letrado” e a sociedade ágrafa e analfabeta que conviviam até a primeira política pública de ensino de língua portuguesa, a Lei do Diretório dos índios, em 1757. Lembremos que os membros das academias de letras se auto-intitulam “imortais”. O domínio da cultura letrada, desde sempre, funciona como símbolo de distinção social. Sérgio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil, fala da inteligência como ornamento e prenda marcando uma elite capaz de manter na estante livros sem conta sem que nunca sejam lidos, lustrando-se, como diria Foucault, na Microfísica do poder, pelo “mito do homem superior”.
Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o personagem Fabiano se envolve injustamente numa querela com um “soldado amarelo” e acaba preso. Fabiano é um tipo humilde – como o são as principais personagens do “Romance de 30”: pobres, nordestinos e analfabetos – “tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia”, diz o narrador, “o vocabulário dele era pequeno”, continua. E, justamente por não poder/saber se explicar, não consegue dizer da injustiça a que fora submetido para, assim, poder defender-se e, quem sabe, evitar sua prisão, quando passa a desenvolver uma árdua e difícil reflexão reconhecendo-se como “bruto”, e, ao se reconhecer como tal, reconhece, na verdade, toda uma estrutura social que se manifesta em forma de um poder que se impõe sobre si e que se realiza no domínio de uma língua que ele não consegue falar, ao menos não com a desenvoltura com que o domínio de uma cultura letrada faria-o falar.
Toda uma condição histórica e social responsável para que ele esteja ali naquela condição se manifesta no episódio. Compara-se, o personagem, ao Seu Tomás da bolandeira, “pessoa de consideração [que] votava”, diz ele. Reconhecendo em Seu Tomás da bolandeira um “homem superior” que “lia livros e sabia onde tinha as ventas”.
Antonio Cândido em seu ensaio “Literatura de dois gumes”, diz que o intelectual, no Brasil colônia, serviu perfeitamente como “peça eficiente do processo colonizador”, forçando uma supervalorização da cultura livresca (cultura do dominador) em detrimento de uma cultura local mais ligada à oralidade e às práticas sociais dos indígenas e mestiços que formavam (e ainda formam) a maior parte da população brasileira. Estabeleceu-se, portanto, desde a formação da sociedade brasileira, uma fissura, um fosso entre letrados e iletrados, entre Imortais e analfabetos, reforçando, assim, o livro como instrumento de exclusão social. Desponta o livro, por fim, para falar como Bourdieu, como “instrumento de imposição ou de legitimação de uma classe sobre outra”.
Há, portanto, na retomada do imposto sobre toda a cadeia do livro no Brasil, temperada pela justificativa estapafúrdia de que o livro, no Brasil, é coisa de rico, uma verdadeira violência simbólica promovida pelo Estado institucionalizado do atual governo federal. Ora, que esperar de um governo que começa simbolicamente com um incêndio que destruiu, quase na sua totalidade, o Museu Nacional, o mais antigo do país? Que esperar de um governo cujo primeiro ato de “reforma administrativa” foi justamente extinguir o Ministério da Cultura? Que esperar de um governo cujo Ministro da Educação, em uma de suas primeiras declarações públicas no exercício do cargo, professa que “universidade é para quem pode pagar”? Que esperar de um governo que nega, ao seu povo, o direito de conhecer a si mesmo, através dos cortes orçamentários às universidades? Que esperar de um governo que nega ao seu povo o direito de celebrar a si mesmo através da sua arte, vetando, em maio desse ano, do auxílio emergencial categorias que beneficiavam os artistas? Que esperar de um governo que pretende taxar os produtos de um mercado já fragilizado pelas crises econômicas desde 2008? Afinal, um país não se faz com homens e livros?
@mackellene
Escritor. Mestre em "Literatura e Práticas Sociais" pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste (ALANE). Editor-chefe de Publicações Acadêmicas da Faculdade Luciano Feijão (FLF), em Sobral-CE. Fundou, junto a outros poetas e escritores, a 1ª Escola de Escrita Criativa do Ceará, dentro da Escola de Artes e Ofícios (ECOA) de Sobral-CE.
Original disponível em https://guiadragao.com.br/no-brasil-livro-e-coisa-de-rico/
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