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Bibliotecas comunitárias da periferia comprovam: livro NÃO É coisa de rico

  • Foto do escritor: Leo Mackellene
    Leo Mackellene
  • 3 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 7 de out. de 2020

Existem hoje, no Ceará, 220 bibliotecas comunitárias em pleno funcionamento, e 203 bibliotecas públicas, todas com fluxo constante de visitantes e de empréstimos. Isso desmente em muito o imaginário popular que entende o livro como bem cultural consumido essencialmente por classes sociais privilegiadas. Definitivamente, livro não é coisa de rico.


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Texto originalmente publicado no Guia Dragão, revista eletrônica do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura do Ceará, no dia 15 de setembro de 2020.


Na matéria que publicamos em 14 de setembro ( https://guiadragao.com.br/no-brasil-livro-e-coisa-de-rico/), discutimos a fala do ministro da economia Paulo Guedes procurando justificar a taxação dos livros pela reforma tributária proposta pelo governo federal em julho passado. Segundo ele, “temos que isentar os pobres e não os ricos, que podem pagar pelo livro”. A fala deixou a entender que, no Brasil, livro é coisa de rico. Lançamos a questão aos nossos seguidores nas redes e realizamos entrevistas com pessoas que fazem parte de toda a cadeia do livro: escritores, editoras, livrarias, professores, leitores, membros de clubes de leitura etc. As respostas foram surpreendentes e desenharam um quadro geral acerca do mundo dos livros e da cultura letrada no país.

Na matéria, também lembramos das sempre lotadas batalhas de rima que acontecem nas praças e ruas dos bairros periféricos. Mas, além das “batalhas”, que envolvem principalmente o público dos SLAMs, as bibliotecas comunitárias são um sinal importante do público leitor nas periferias, desconstruindo a ideia de que “livro é coisa de rico”.


A recentemente aprovada Lei Aldir Blanc exigiu que os chamados “trabalhadores da cultura” e equipamentos culturais não vinculados ao poder público se cadastrassem numa plataforma de registro geral chamada Mapa Cultural. De acordo com os cadastros já efetuados, existem hoje, no Ceará, 220 bibliotecas comunitárias em pleno funcionamento, enquanto as públicas somam 203.


Em Fortaleza, além da Biblioteca Comunitária do Curió, mencionada na matéria por Nathan Matos, um dos fundadores da editora cearense SubstÂnsia, existem outras como a Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias, localizada na Comunidade do Papoco, no entorno do campus do Pici da UFC. A biblioteca nasce dentro da casa das irmãs Cristina Castro, Tânia Castro e Ana Argentina Castro, e tem pelo menos 60 crianças cadastradas e com frequência assídua nas atividades da biblioteca e nos registros de empréstimo. Segundo o estudo monográfico feito pela pesquisadora Ruth Paulina Rios de Souza, “é o único equipamento cultural do bairro. Todo tipo de atividade que envolve mais diretamente arte e cultura acontece lá”. São realizadas oficinas de teatro, cinema e pintura, saraus, além das rodas de leitura “e também rodas de conversa com pessoas de outras comunidades”, complementa a pesquisadora.


Em Sobral, a Biblioteca Comunitária Adalberto Mendes, do Movimento Social FOME, nasceu num dos bairros mais violentos da cidade, o Terrenos Novos. “Em 2013, o bairro vivia um cenário de violência muito alarmante, muitos dos nossos amigos estavam envolvidos com gangues e, só no nosso bairro, somavam-se aproximadamente sete grupos que se enfrentavam pelas ruas do bairro a fim de tomar território, ou ‘simplesmente’ para tirar a vida de outro jovem do mesmo bairro por ser ou estar em território de gangue rival”, conta Renan Dias, um dos fundadores, junto de Raiana Souza, Tiaguim Tavares, Fran Nascimento, Wisley Nascimento, Leandro Guimarães e Moisés Vieira.


A Biblioteca Comunitária Adalberto Mendes dos Terrenos Novos conta hoje com 1000 títulos e registra uma visitação intensa de um público variado, entre crianças, jovens e adultos. “Começamos a fazer intervenções nas ruas, esquinas e terrenos baldios preenchendo o cotidiano com arte. Criamos o CINE MUCAMBIM, com a proposta de ocupar e criar uma rede de contato tanto para a produção e divulgação do audiovisual autoral e local, como também exibir os filmes que a galera pede e, assim, gerar um espaço de discussão.


Surgiu então a ideia de circularmos de bike pelos bairros da cidade de Sobral. Então, iniciamos as pedaladas com a BIBLIOTECA AMBULANTE, em 2017 e 2018. Acontecia aos sábados, com um acervo de 200 livros, muitas histórias, sonhos e FOME a serem compartilhados. Eu e a [poetisa do SLAM] Fran [Nascimento] éramos os responsáveis para planejar os percursos e articular com a galera. Eu ficava com a bagageira de livros e Fran ficava noutra bike com os materiais das oficinas e depois chegou o Tiaguim para somar também com as oficinas de desenho e pintura. Em meio a tudo isso, em 2019 tomamos a iniciativa de criarmos a Biblioteca Comunitária em um espaço físico. Foi aí que conversei com minha avó materna, Dona Carmélia de 85 anos, se ela cederia um quartinho da casa dela para montarmos nossa biblioteca. Minha avó aceitou e iniciamos a montar nosso acervo com doações vindas de uma galera que sempre apoiou e somou com nossa FOME”.


A Biblioteca homenageou um morador do bairro, o “Seu Adalberto Mendes”, que participou do início da organização da comunidade, foi ex-presidente da Associação Comunitária do bairro e fundador da primeira rádio comunitária do lugar.


Um fato que Renan faz questão de mencionar é que “em maio de 2019, no dia das mães, para ser mais preciso, foi a data que iniciamos nossa Biblioteca. E um fato importante para ser acrescentado é que, na mesma manhã em que estávamos levando os acervos de livros para a biblioteca, numa outra rua próxima estava sendo implantada uma base da polícia militar. Esse fato nos trouxe uma reflexão muito interessante: de como na periferia as estratégias de políticas públicas são sempre estratégias de violência. Eles usam armas, nós usamos livros”.


Como se pode comprovar, definitivamente, não é verdade que, no Brasil, livro é coisa de rico!

@mackellene

Escritor. Mestre em "Literatura e Práticas Sociais" pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste (ALANE). Editor-chefe de Publicações Acadêmicas da Faculdade Luciano Feijão (FLF), em Sobral-CE. Fundou, junto a outros poetas e escritores, a 1ª Escola de Escrita Criativa do Ceará, dentro da Escola de Artes e Ofícios (ECOA) de Sobral-CE.

 
 
 

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