Mailson Furtado e a maturidade da literatura independente no Brasil
- Leo Mackellene
- 3 de out. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de out. de 2020
O Prêmio Jabuti de 2018 conquistado pelo cearense de Varjota Mailson Furtado Viana, nas categorias Poesia e Livro do Ano, representa um novo momento para a literatura independente no país. Numa entrevista exclusivaque fizemos com o poeta, ele levantou um debate sobre o fazer artístico dentro do campo literário nacional quase como um ato político, procurando desmistificar a ideia de um nordeste inventado, estereotipado desde a chamada "Geração de 30" da literatura brasileira. Para ele, sua premiação promove “a criação de um novo espaço, de novas possibilidades, de uma terceira margem, nesse campo da literatura e da arte".

Texto originalmente publicado no Guia Dragão, revista eletrônica do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura do Ceará, no dia 07 de outubro de 2020.
À cidade é o nome do livro que quebrou paradigmas e intrigou o mercado editorial brasileiro. Composto por poemas de versos curtos escritos por um poeta da Varjota, cidade cearense com 20 mil habitantes, que falam sobre crescer naquela, segundo ele, cidade inventada que também inventou nele um poeta. O livro e seu autor fizeram história ao levantar o debate sobre o fazer artístico dentro do seu território, quase um ato político. “No sentido de abrir o debate pr’além do monólogo sobre o qual o Nordeste é alicerçado; de mostrar um pedaço desse país que não é puramente passado ou atrasado, mas presente e vivo”, confirma o protagonista dessa história real, o poeta jabuti Mailson Furtado.
Em 2018, o livro chacoalhou a Câmara Brasileira do Livro, que promove o prêmio literário mais cobiçado do país, o Prêmio Jabuti. O poeta Mailson Furtado ganhou na categoria Poesia e na mais cobiçada de todas, para a qual concorrem todos os livros ganhadores em suas respectivas categorias, a de Livro do Ano.
Chamado para discursar diante de uma plateia seleta de escritores, editores, grandes livreiros, na cerimônia apresentada por Serginho Groisman, Mailson iniciou pedindo desculpas “porque ainda está caindo a ficha, ainda estou digerindo o que está acontecendo comigo aqui hoje”. As maiores editoras faziam parte do pleito, Companhia das Letras, Ática. Quando o apresentador leu a ficha de ganhador, “Mailson Furtado Viana, um autor independente”, o mundo editorial entrou em polvorosa.
Jotabê Medeiros, biógrafo de Belchior e Raul Seixas, publicado pela Todavia, chegou a comentar que “Foi bom ver um nordestino independente invadindo a festa dos bacanas”. A primeira entrevista do poeta Mailson Furtado publicada pós-Jabuti, assinada pelo biógrafo, intitula-se “O poeta da várzea que ousou desafiar o mainstream”. Para Jotabê Medeiros, “O feito de Mailson era impensável há 5 ou 6 anos. O principal efeito foi o alargamento dos conceitos do estabishment literário, muito escorado na coisa da panelinha, do lobby e da força econômica. A premiação dele sacudiu os cânones dos júris. E trouxe aquela lufada de esperança para todos os excluídos da literatura nacional, encorajou, injetou autoconfiança. Outra coisa foi ter dado momentaneamente à poesia um status de mainstream literário, coisa que tinha parado lá em Paulo Leminski”.
“Há a criação de um novo espaço, de novas possibilidades, de uma terceira margem, nesse campo da literatura e da arte”, diz o poeta em entrevista exclusiva para o Guia Dragão, “É nessa terceira margem, nesse novo lugar, que eu gosto de me inserir”. Perguntado sobre se o mercado Literário mudou para a literatura independente, é categórico em afirmar que “o mercado não, o cenário sim”. Segundo ele, “há um debate muito lacrado sobre essa questão do mercado [editorial] na figura do livro. As baixas taxas de vendas anuais de livros não querem dizer, necessariamente, que o brasileiro não lê! Pra mim, pesquisas desse tipo são rasas e têm muitos desvios.
Na cena independente, pra além do livro, há outras possibilidades acontecendo, principalmente na poesia. Tem o livro, claro, como produto físico, mas existe, hoje, uma amplificação dos eventos literários, advindo, inclusive, de iniciativas espontâneas da sociedade civil. É muito bonito isso! Nos últimos dois anos, no interior do Nordeste, de 2018 pra cá… Olhe, ano passado, na Bahia, aconteceram mais de 50 feiras; na Paraíba, mais de 20. No Ceará, não tanto, mas teve algumas também. Isso, por si só, já é um movimento orientado por um ‘fazer independente’, um fazer independente de leitores, de admiradores de literatura. Outra: principalmente cidades nas metropolitanas: os movimentos de poesia falada, SLAMs, saraus, batalhas de rima… Pra mim, isso também faz parte de uma cena independente e não tem nada de livro, apesar de ser uma cena muito forte. Outras ainda: a poesia na internet, a poesia de muro, de rua, a poesia pintada em muro. Por isso que eu falo que, na cena literária, independente do mercado [editorial], há um movimento muito grande. O escritor não é só aquele que escreve e vende livros. Vai muito além disso”.
A história da literatura brasileira acompanha o desenvolvimento econômico do país. Se fizermos um tour pela história do Brasil e da história da literatura brasileira, é possível observá-lo.
O expoente do Barroco entre nós é Gregório de Matos, baiano, no momento em que a principal economia do Brasil ainda era o pau-Brasil, exportado para a Europa pelo porto de Salvador-BA; o Arcadismo, de um Cláudio Manoel da Costa, ou um Tomás Antônio Gonzaga, por exemplo, se desenvolveu em Minas Gerais, num momento em que a economia do país se baseava no ciclo do ouro extraído por lá; o Romantismo, o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo foram escolas literárias que se desenvolveram principalmente no Rio de Janeiro, pós-vinda da família real para o Brasil, quando o Rio de Janeiro se tornou, então, capital do país.
Há um caso interessante, no entanto: em 1892, a Padaria Espiritual foi um movimento literário que teve os mesmos preceitos formais e conceituais da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, que só viria acontecer 30 anos depois. Por que a Semana de Arte Moderna e não a Padaria Espiritual é considerada “marco da arte moderna” no Brasil? Há muitas respostas para essa pergunta e muitas perguntas ainda sem resposta. Mas a mudança do pólo econômico e político do país em meados do século XIX – da cana-de-açúcar do NE para o café e as minas no SE – pode explicar este “marco” no plano da constituição do Campo Literário (que constrói o Cânone e, consequentemente, a História da Literatura).
É que essa mudança de pólo econômico teve implicações diretas no estabelecimento do cânone e, portanto, da própria história da literatura no Brasil. Se observarmos os expoentes das principais escolas literárias do séc. XIX no Brasil (com algumas exceções, claro), perceberemos que eles faziam parte de uma elite política e econômica ainda remanescente do Nordeste rural enriquecido pelos Ciclos da carne, do algodão e da cana-de-açúcar. Da Escola de Recife, onde figuravam modernizadores do pensamento brasileiro como Capistrano de Abreu, Silvio Romero, Edison Carneiro, Franklin Távora, Farias Brito, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco etc., para a Semana de Arte Moderna em São Paulo, em 1922, financiada pela nova Indústria Cafeeira e pelos criadores de gado.
Esse deslocamento desenhou o arranjo social do campo literário que perdura até hoje no país.
Em 2005, a PubliFolha publicou uma coletânea de escritores contemporâneos intitulada Literatura Brasileira Hoje, de Manuel da Costa Pinto, onde aparecem 60 escritores. 43 do eixo Rio-Sul.
Em 2007, o Programa Petrobrás Cultural abriu edital que premiaria 23 projetos de livros com bolsas de criação literária. 423 projetos foram inscritos, provenientes de todas as regiões do país. Os projetos contemplados, no entanto, concentravam-se no S e SE: São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Tal acontecimento provocou um debate acalorado entre escritores e intelectuais de várias partes do país num dos primeiros e mais importantes portais de literatura daquela época, o Cronópios, onde escreviam intelectuais como Afonso Romano de Sant’Anna.
O debate durou semanas e fora realizado num mural virtual onde se podia publicar um sem limite de comentários, desde que breves; ultrapassou esse limite e vários ensaios foram publicados sobre o tema. Até o editorial do site se pronunciou a respeito, dizendo que “pode-se argumentar que qualidade literária não tem geografia, mas estranhamos que não haja textos relevantes em outras regiões. E a questão fica mais estranha ainda quando vemos que a comissão de seleção foi composta por cinco membros dos respectivos estados: RS, MG, RJ, PR e SP”.
Paulo Linhares, em seu livro José de Alencar: o profeta e o chocolate, debate acerca do surgimento do campo literário brasileiro, que, segundo o estudioso, foi fundado pelo cearense José de Alencar. Na sua pesquisa, o autor avalia “o momento formativo da vida intelectual brasileira a partir da trajetória política, artística, social e intelectual de um dos seus maiores personagens”. O autor destaca, no livro, “o aparecimento da primeira geração de escritores e intelectuais com um público leitor, constituído, em sua maioria, por mulheres e estudantes. Contavam, também, com editores, livrarias e críticas em jornais de grande circulação, sem que se pudesse falar de um campo literário independente, autônomo em relação às atividades políticas e econômicas”, ou seja, o rascunho do que o estudioso da literatura brasileira Antônio Cândido chamou de “sistema literário”; a tríade “autor-obra-leitor”.
Os maiores escritores da época o atestavam. Em “Instinto de Nacionalidade”, o ensaio literário mais conhecido de Machado de Assis, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas reconhece, logo no início do texto, que “Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo”.
No famoso prefácio “Bênção Paterna”, que José de Alencar escreveu a um de seus últimos livros, Sonhos d’Oiro, o autor cearense reconhece que “quando as letras forem entre nós uma profissão, talentos que hoje apenas aí buscam passatempo ao espírito, convergirão para tão nobre esfera suas poderosas faculdades. É nesse tempo que hão de aparecer os verdadeiros intuitos literários; e não hoje em dia, quando o espírito, reclamado pelas preocupações da vida positiva, mal pode, em horas minguadas, babujar na literatura.”
A conclusão a que chega Paulo Linhares é inevitável: “a conquista do campo literário é uma longa luta no Brasil, quase sempre sem conclusão”.
Pois bem, o Prêmio Jabuti, de poesia e de Livro do Ano, de 2018 dado a “Mailson Furtado Viana, um autor independente” representa bem não o surgimento de um “campo literário independente”, mas o alcance da sua maturidade, de sua autonomia, de nossa independência.
@mackellene Escritor. Mestre em "Literatura e Práticas Sociais" pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste (ALANE). Editor-chefe de Publicações Acadêmicas da Faculdade Luciano Feijão (FLF), em Sobral-CE. Fundou, junto a outros poetas e escritores, a 1ª Escola de Escrita Criativa do Ceará, dentro da Escola de Artes e Ofícios (ECOA) de Sobral-CE.
Original disponível em https://guiadragao.com.br/mailson-furtado-e-a-maturidade-da-literatura-independente/
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